sábado, 30 de janeiro de 2021

Melhores Filmes de 2020

 Melhores Filmes de 2020

    Sob qualquer perspectiva, o amanhã será pior. Se foram os cenários otimistas da primeira metade do ano difundido por artigos de Zizek, de que a atual crise levaria à reflexão geral de que o capitalismo conforme é praticado atualmente é insustentável e, portanto, deveria ser substituído pelo socialismo repensado; e de Zhangke (surpreendente MASCOTE da Mostra de São Paulo), que enxergava na abstinência da rotina usual uma forma de criar uma nova geração de público à arte, uma que apreciasse melhor, por exemplo, o slow cinema, que tornasse realizadores relativamente obscuros, como Apitchapong, Lav Diaz e Pedro Costa, nas próximas grandes estrelas.

    O amanhã do ontem descrito é um hoje em que a Superintendente de Seguros Privados afirma que a morte dos idosos por Covid-19 deve ser encarada como algo positivo devido à consequente melhora nas contas da Previdência. Algo que demonstra como a agenda neoliberal do governo e seus associados segue bem-sucedida dentro de sua própria realidade ao mesmo tempo em que notícias como essa não chegam ao grande público devido ao paywall abusivo da grande mídia que, ainda assim, é vista como inimiga do governo.

     Dentro de um contexto em que mais de 220 mil mortes (no momento em que a lista é redigida) justificam o desejo à morte do Chefe de Estado que se ausenta de suas responsabilidades, a tendência do cidadão é tornar-se cada vez mais inerte envolto pelas suas preocupações. No entanto, Aristóteles mostra-se certo em sua "Poética" visto que, em diversos momentos do ano, o cinema pôde me provocar a catarse suficiente pra me manter operante.

    Assim, listam-se, a seguir, filmes desse ano que não só alcançam excelência técnica e narrativa como também foram capazes de trazerem alívio e expurgo a mim e quem mais pude testemunhar assistindo-os.

Menções Honrosas

 

Emicida: AmarElo - É Tudo pra Ontem 


Um making of da magnum opus de um dos músicos nacionais mais relevantes da atualidade rapidamente tornam-se bem mais do que isso a partir de suas análises sobre o cenário sociorracial do país em paralelo ao histórico do protagonismo negro na produção artística popular brasileira que Leandro traça. Com perfeita coesão e solidez, mostra-se o documentário brasileiro perfeito para o encerramento da década, além de excelente exemplo de como o tópico da representatividade pode ser conduzido sem cair no apelo mercadológico ou em contradições com as próprias bandeiras levantadas, como ocorreu com o belo "Black is King" da Beyoncé (como bem explicado pela Lília Schwarcz, apesar da manchete errônea), que possivelmente ficará para a posteridade apenas como representante introdutório do afrofuturismo no mainstream, como foi "Wild Style" para a cena do hip hop do Bronx em 1982.
 

TIME

    É talvez a obra mais crua e informativa já feita sobre abolicionismo penal e encarceramento em massa, mas funciona melhor como material de advertência do que cinema propriamente dito. Considerando que a prioridade máxima é a mensagem, diversos elementos de composição são negligenciados, impedindo qualquer coisa que pudesse ser chamada de mise-en-scène fosse constituída. No entanto, em nenhum momento isso ofusca a sua relevância, aparecendo aqui mais como indicação pessoal para quem se interessa em saber mais sobre como o racismo estrutural opera em suas facetas menos aparentes.

 Ghost Strata

    Um dos vários destaques do maior evento de cinema experimental do ano, a 4ª edição do Festival Ecrã. Ben Rivers já vinha numa tendência de brincar com as conexões entre a espécie humana e a natureza intocada, mas pela primeira vez a atenção é voltada mais pra como o ser humano reage ao que ele ainda não interferiu, o mesmo caminho percorrido por Minh Quy Truong no primoroso "The Tree House", em que o diretor investiga o cotidiano de uma das últimas etnias indígenas das montanhas do Vietnã. Dessa forma, o espectador é conduzido por doze segmentos (um para cada mês) de revelações epifânicas ao eu lírico pelos próximos 50 minutos, tudo com a atmosfera ébria que já é familiar na filmografia de Rivers devido ao desligamento necessário para se atingir o niilismo consequente à conclusão que as 12 conversas convergem: o planeta começou e acabará sem a humanidade, que no fim das contas será apenas mais uma espécie dominante a ter seu período de existência relativizado em números de média notação científica.

 Aves de Rapina (e a Fantasbulática Emancipação de uma Harley Quinn)

     "Aves de Rapina" aproveita sua própria condição de produto da saturação de um gênero na aurora de seu definhamento para subvertê-lo em toda a sua estrutura mirando numa iconoclastia que supera a psiquê da personagem, talvez aquilo que "Coringa" gostaria de ter sido mas não foi. Como bem dito por William Andrades, "é um dos filmes americanos mais espirituosos desde 'Magic Mike XXL'". Uma emancipação metonímica para um filme que se rompe de todos os moldes pré-estabelecidos nos últimos 15 anos de como um filme de herói deve ser mas está sempre referenciando os predecessores mais nostálgicos, inserindo aquele realismo nas interações sociais dos Homem Aranhas de Raimi na Gotham mais cartunesca desde a de Schumacher e uma identidade instintivamente formalista na montagem que remete imediatamente ao Verhoeven da década de 90. Facilmente o melhor filme da DC em muito tempo, ainda mais com um vilão que se encontra à altura das heroínas e em poucos segundos demonstra apenas parte de sua misoginia que, ainda assim, o consolida como ameaça verdadeira a qualquer uma que simplesmente olhe feio pra ele.
 

35 - Glauber, Claro

    Nunca esperaria um retrato sobre o exílio de Glauber no Velho Mundo ser tão despretensioso. Por mais que haja seus momentos de quase pedantismo, como sua declaração em portuliano após "Idade da Terra" perder o Festival de Veneza, nada disso vai além de um apanhado de relatos parciais (tais como foram todos os filmes de Rocha) e nostálgicos de quem esteve ao lado do cineasta em seus momentos mais obscuros, tanto que os bastidores da produção de "Claro" aos poucos vão ficando de lado, por mais que sejam igualmente fascinantes, como o segmento sobre a decupagem da cena da praia, onde os atores foram filmados sob efeitos de ácido. Num geral, é mais um filme que qualquer cinéfilo ficaria contente em assistir mas só terá condições vê-lo em [Hidef] de fórum.

34 - Cabeça de Nêgo 

    Déo Cardoso não esconde a influência de Spike Lee, mas ao mesmo tempo traça um caminho próprio do qual o país ainda dará muita atenção. Por agora, temos quase dois atos de um didatismo eventualmente desanimador que, infelizmente, ainda se mostra necessário, que ainda por cima se sustenta sobre alguns diálogos que fora do teatro tornam-se inorgânicos, ainda que a intenção de se entrelaçar com o léxico do público adolescente fosse boa (todo o diálogo do "Fred Hampton era massa"). Por sorte, Déo não para na teoria e encena com muita destreza o que ocorre na prática, a violência do Estado em cima de movimentos secundaristas, interpolada com filmagens reais de operações policiais reagindo contra ocupações em escolas onde os alunos se cansaram das condições precárias.
    São nesses momentos em que o filme é melhor, em que o protagonista torna-se apenas mais uma parte de um coletivo mais afetado e vulnerável, que sempre manterá maioria numérica mas tem sua história manipulada pela grande imprensa (o diretor não esconde a semelhança entre o nome da fictícia TV Brisa do Mar com a filiada da Globo no Ceará, TV Verdes Mares). É o repórter independente impedido de fazer seu trabalho, a jornalista da grande emissora pedindo pro câmera filmar os jovens que aderiram à evasão escolar mas, por acaso, passavam perto da ocupação, da aluna abrindo o portão dos fundos pra impedir a saída do superintendente e, mais que qualquer outra cena, aquela do adolescente que entrou na facção descobrindo que o irmão do cara que ele matou ainda assim luta pela oportunidade de que ele volte a estudar.
    "Cabeça de Nêgo" é o filme nacional politicamente mais relevante do ano junto à "Tentehar - Arquitetura do Sensível", é cinema político feito pelo povo e para o povo, podendo ter seus esbarros relativizados por ser um diretor estreante que ainda irá polir seu autorismo e suas referências (Igor Nolasco bem que chamou atenção ao fato de praticamente todas as lideranças citadas serem estrangeiras, reduzindo nomes como Lelia Gonzales, Marielle Franco e Zózimo Bulbul a rabiscos nas cadeiras escolares e nos agradecimentos finais).
    Em suma, é um registro essencial que talvez tenha força suficiente para enterrar obras burguesas que disfarcem a incompetência de lidar com o imagético com o vazio poético (aqui se lê "Democracia em Vertigem"). É o que vêm depois do Cinema Novo em matéria de força dramática atrelada ao político.

33 - First Cow

    Humanizar o Destino Manifesto sem praticar revisionismo que favorece os opressores era uma tarefa difícil, mas Kelly Reichardt faz um excelente trabalho diante desse desafio. Sob os únicos pilares que sustentam aquela frágil comunidade de pioneiros, o trabalho que edifica  o indivíduo dentro da lógica protestante e os raros laços de afeto como o de Cookie com King Lu, Reichardt logo estabelece o contraste mais marcante da narrativa, uma natureza em clímax intocada por uma civilização em écese. Aqueles homens são pioneiros, mas há que custo?
    Diante da hostilidade de um ambiente aparentemente inofensivo mas que pode levar o homem à sua pior versão, o que, ao mesmo tempo, impede a insanidade e ameaça a integridade física dos protagonistas é a camaradagem mútua de quem sabe que já têm destino definido, como mostra a primeira cena com a criança contemporânea achando as ossadas dos viajantes. Do caráter educativo que Oregon Trail teve para mais de uma geração, temos "First Cow", uma obra que subverte o western para aquilo realmente foi, a busca por fazer parte de algo grande daqueles que nasceram tarde demais para participar das Grandes Navegações e cedo demais para a exploração espacial.

32 - O Homem Invisível

    Mesmo depois de tantos anos a Blumhouse ainda produz seus lançamentos, mesmo os mais comerciais, como esse, com tanta alma quanto com seus primeiros filmes B. Algumas intenções ainda se mantêm, como o esforço ininterrupto de sustentar a tensão para além do que é necessário, ao mesmo tempo em que, como bem apontado por Tuoto, se apropria de elementos do cinema de Kiyoshi Kurosawa, Antonioni (o que, claro, se refere ao movimento arbitrário da câmera como se traçando uma ameaça invisível, que acaba corroborando as conclusões levantadas pela protagonista ainda no 1º ato) e por que não Almodóvar? Todo o segmento da gravidez não é nada além do que a história do Amante minguante em "Fale com Ela", além da atuação de ouro da Elizabeth Moss, que traz um quê da descrença que, de certa forma, também atribuem à protagonista de "Ata-me!". Não que o lançamento aborde Síndrome de Estocolmo, mas sua protagonista, assim como no filme de Almodóvar, é igualmente afetada por certa falta de comunicação, que aqui é consequente da falta de evidências materiais e sabotagem por parte de outros.
    Um filme desses, logicamente, não se sustenta só com toda essa sutileza. Por sorte, têm seus momentos mais absurdos: o soco invisível na cara da criança, a cena do restaurante, a sequência de escape do hospício com o carro de um estranho. Tudo aquilo que já parecia exagerado em 2000 na versão de Verhoeven agora é elevado à enésima potência pois não só há o uso da tecnologia como ferramenta de poder sobre uma mulher vulnerável como o agressor também possui outras habilidades nefastas como a manipulação e o gaslighting que independe do quão visível ele está, mas no fim das contas tudo isso fica no subtexto. Não que isso represente um vazio temático, mas a máxima adequação de um clássico à contemporaneidade sempre é animadora. Apesar da libertação final não condizer à narrativa original, é igualmente gratificante.

31 - Cavalo

     Enfim, chegaram perto de filmar corpos no Brasil com a mesma força poética de Claire Denis. É quase impossível não relacionar a estética e a mise-en-scène daquele urbano de matriz africana com a literatura de Luís Antônio Simas: para o candomblé, a orixá Nanã criou o homem no barro, então não tinha como o filme começar senão na lama do mangue da lagoa Mundaú assim como não tinha como o filme acabar senão embaixo da chuva. Todo o resto é axé, potência, em forma de mudança. Nada no filme vem muito pré-estabelecido de propósito. É a busca da própria ancestralidade através dos corpos, ora performado pela dança (são sete protagonistas bailarinos pertencentes a um grupo de dança urbana) ora oferecendo-os a entidades metafísicas de suas religiões.
    Não há bem um limite para o que é permitido como suporte nessa busca pelo autoconhecimento dos corpos e do seu passado. Pode de repente tocar Sigur Rós num filme que privilegia, sobretudo, o hip hop e o batuque, pode de repente uma orixá mulher se comunicar através de um corpo masculino. De certa forma, esse também é o axé em seu constante estado de mudança como Simas defende. O mais importante é a mentalidade aberta e isso se mantém pelos mais de 90 minutos do longa. Uma das grandes surpresas do cinema nacional desse ano, uma das melhores fotografias dos últimos 20 anos e mais um destaque do Festival Ecrã.

30 - Babenco - Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: parou

   Assim como Bowie deu nas mãos de Tony Visconti a produção de "Blackstar", Babenco não poderia ter incumbido a responsabilidade da captura de seus últimos momentos para outra pessoa além de sua confidente (e, por acaso, esposa), Bárbara Paz. A situação de Hector como cidadão do mundo ("Os argentinos acham que sou brasileiro e os brasileiros acham que sou argentino") e a forma como viveu, quase como antropólogo estruturalista, in loco nos ambientes que mais lhe tiravam o conforto, o forçou a criar um exoesqueleto emocional para que suportasse melhor a dor. O documentário, portanto, entrelaça filmagens pessoais de seus depoimentos finais de como enxerga a vida enquanto sofre uma dor mais que palpável, ainda que consiga amansá-la pelo contraste de seu vigor intelectual a uma retrospectiva de sua carreira como ator e diretor.
    Da relação entre os dois formatos surge um epitáfio com uma natureza muito particular, Babenco se despedindo não de seu público ou de seus amigos, que só aparecem na cena final, justamente a que simboliza a recepção após o velório (a única em que ele não marca presença nem atrás das câmeras), mas da arte que ele ajudou a solidificar e que o solidificou, de modo conotativo mas de um jeito secundário, aquele anteriormente citado, endurecendo-o. Assim como seu sujeito, não é uma despedida sentimental, mas não cede à indiferença.
    Prefere o onírico ao realismo, justamente o cineasta brasileiro que primeiro se aventurou no neorrealismo. Não que haja contradições, sua cota quanto a essa abordagem já foi cumprida. Acontece que o foco desse filme é um que o diretor nunca havia se arriscado a abordar: ele mesmo, então que escolhesse a melhor forma de contar sua história pela última vez. Diante dos ensinamentos cinematográficos que ele passa a Bárbara, dos quais também podemos acompanhar, como na cena do ajuste de foco com o viewfinder, revela-se a verdadeira força dramática do filme. Não é só um réquiem como também uma transmissão de legado de Babenco para Bárbara. Não poderia ter sido mais digno.

29 - Feels Good Man

    Talvez o documentário mais importante para a compreensão da minha geração, acompanhando o Pepe the Frog desde a criação como personagem de uma HQ inocente até sua memeficação para tornar-se um dos maiores símbolos da extrema-direita enquanto seu crescimento era controlado por mentes anônimas no 4chan. Assim, o filme torna-se também o mais completo e honesto extrato jornalístico do movimento NEEB, das maneiras com que perigo é construído através da sobreposição de inúmeras camadas de ironia a um indivíduo ao ponto de literalmente se perder em seus personagens no mundo virtual.
     É aquilo que todo mundo já deve saber mas é difícil de cair a ficha: propriedade intelectual torna-se algo muito relativo quando uma obra se adentra na Internet. A história a ser contada é a de um criador que de um momento pro outro já não reconhecia mais a própria criação. É um alerta com alarmismo consciente das dificuldades de se combater o ódio virtual, que muitas vezes é articulado por quem não faz nada além disso, tornando-os ferramentas perfeitas para catalisarem vitórias e derrotas eleitorais, não só no caso da Hillary, como demonstrado pelo alquimista entrevistado, mas também no caso do próprio Trump, visto que ele perdeu a reeleição não por causa da força de Biden mas porque os channers se organizaram para votar na candidata libertária independente, subtraindo o contingente necessário para a vitória de Trump.
    Ainda por cima, é admirável a capacidade do diretor de manter foco em todas as suas frentes (a família do criador do Pepe, os channers entrevistados e as figuras-chave da campanha eleitoral de Trump em 2016 que ajudaram a popularizar o desenho para além da juventude). Diante do absurdismo com que esses 3 grupos vivem, sua coesão era uma tarefa muito difícil, ainda mais mantendo um formato documental muito tradicional, o que justifica o merecido prêmio especial de Sundance atribuído ao filme.

28 - Les Miseràbles

   O gigantismo de parte do cinema francês, aquela orgulhosa de sua "identidade nacional", vai se diminuindo ao longo dessas quase 2 horas. Por mais hiperbólicos que sejam os dois últimos atos do filme, o microcosmo da cidade conurbada à capital é muito bem construído dentro desse contexto multiétnico da França suburbana e todos os seus paralelos possíveis da obra de Victor Hugo cujo nome é emprestado aqui.
     Diante dos elementos estrangeiros àquele ambiente, no caso os policiais do distrito, a reação sempre acompanhará hostilidade. Daí que vem a grande fraqueza do longa, considerando que se inspira nas manifestações de 2005. Apesar de ter sua relevância retomada desde junho do ano passado, na época em que o filme se passa (Copa do Mundo de 2018 sob a ótica dos imigrantes franceses de 2ª geração), aquele intervalo de 13 anos aparenta ser bem mais maiúsculo que as várias décadas separando "Em Trânsito", de Petzold, da obra cujo filme foi inspirado, por mais que a força dramática dos momentos finais do longa do ano passado se destaquem, especialmente como comeback daquela tendência destrutiva politizada do cinema francês de festival de um "La Haine".

27 - Dias (Rizi)

    Tsai em seu estado mais natural. 2 horas de encanto contemplativo de umas das relações humanas mais frágeis imagináveis. A força dramática não se encontra no diálogo (até porque não há nenhum), no enquadramento ou na dinamicidade do enredo, mas na atenção que o autor é capaz de captar do espectador diante do nada reinante, de modo que qualquer ação seja o suficiente para alterar completamente a forma fílmica.
     A sequência do quarto de hotel, por exemplo, se estende por meia hora do único encontro entre os dois protagonistas, um prestando um serviço médico para aliviar a dor do outro, mas a condição solitária de ambos que pudemos acompanhar no restante do filme leva ambos à desolação quando se separam, restando ao serviçal a caixinha de música como única lembrança daquele encontro breve com outro indivíduo que partilha do mesmo sofrimento que ele. É a partir da solidão, a verdadeira unidade estilística do filme, que o taiwanês retira da manga sua carta mais tradicional: a composição de um plano em que o vazio predomina. Dali em diante, já não existe mais nada, o personagem e o espectador limita tal cosmologia do filme somente àquela figura.

26 - Undine

    Petzold é a melhor anomalia do cinema europeu. Enquanto seus conterrâneos de macrorregião caminham entre extremos na condução do sentimentalismo, Petzold sempre surpreende com sua capacidade de estabelecer equilíbrio nas emoções de seus personagens ao ponto de lançar o filme mais carinhoso de seus respectivos anos mesmo com seus enredos sugerindo o contrário, como ocorreu com o excelente "Em Trânsito". Assim, em seu longa mais recente, "Undine", o cineasta funde seu fascínio com Berlim a uma história de amor atemporal, como sugere as rimas visuais dos contraplanos entre os protagonistas em diferentes momentos do filme baseado na arquitetura dos edifícios que os envolvem.
    De certa forma opera como gêmeo bivitelino de seu outro filme que se passa em Berlim, "Gespenster", inclusive podendo aqui traçar um paralelo com a filmografia de Juliana Rojas pela maneira com que também consegue introduzir o cenário metropolitano (no caso, a grande São Paulo) em seus filmes de modo que torne-se um personagem onisciente (se "Gespenster" é o "Sinfonia da Necrópole", "Undine" é "Boas Maneiras"). Essa onisciência de Berlim é especialmente distinta pelos seus cartões postais quase nunca aparecem em quadro, e quando aparecem quase sempre ficam fora de foco, dando ao público trabalhar apenas com a maquete da repartição de Undine, tendo pra si a cidade como ela realmente é, um trabalho a ser finalizado desde a concretagem do Potsdamer Platz na virada do século.
    No entanto, o casal se recusa a se deixar concretar pelo ambiente. E porque se deixaria? É justamente a primeira vez em que o amor num filme de Petzold é correspondido, qual seria a necessidade de induzi-lo à frieza? Por isso mesmo escapam aos pântanos de Nordrhein-Westfalen, onde podem desfrutar de um bucolismo do qual o caráter emocional do cinema do alemão finalmente corresponde ao cenário. 
    Ainda que o folclórico esteja enraizado no filme, tudo caminha rumo à intenção do cineasta de expôr o quão raro é o amor do casal, de modo que quando surgem os riscos daquilo se acabar, especialmente da condição de freelancer de Undine numa era pós-industrial, tudo vai se dissolvendo até sobrar aquelas mesmas três entidades: Christoph e Undine, seus trabalhos pouco usuais e os símbolos de uma Berlim milenar que parece ingrata com suas mudanças, ainda ecoando os fantasmas da divisão. Aos poucos, "Undine" transmuta-se numa metamensagem ao espectador de que o filme é um respiro mais que bem-vindo para um cinema alemão que enfim escapa do ralo de austeridade da tendência neoliberal dos filmes da "Escola de Berlim".

25 - Sound of Metal

    Apesar da alternância de diegese no aspecto sonoro, indo e voltando entre a ótica onisciente de audição universal e a subjetividade surda do protagonista, que rompe qualquer tentativa de unidade nesse elemento da mise-en-scène, a escolha justifica-se pelo didatismo proposto - este é, sobretudo, um espaço de representatividade para a comunidade dos surdos. Dito isso, Riz Ahmed se adequa perfeitamente ao projeto de Marner com sua habitual habilidade de esconder angústia sem que esta se ausente de seu repertório linguístico (aqui, mais corporal que nunca).
    Nesse sentido, ainda que hajam válidas críticas à falta de coerência comunicativa do filme, que pôde ser melhor exposta pela visão de Michel Gutwillen, que o compara a Telemundo, de James Benning, um dos expoentes do cinema experimental do ano; a condução aplicada para transformar Ruben em um melhor ouvinte só depois dele virar deficiente auditivo, assim como a quietude associada à cessão final contrastada a toda a sequência cacofônica pós-operatório (definitivamente a melhor mixagem de som do ano), pagam as máculas anteriores.

24 - Minari

    A temática da diáspora foi curiosamente uma das mais frutíferas do ano em todas as possíveis frentes do cinema, seja no documental, com os caboverdeanos de Boston em "City Hall", no cinema experimental, com os brasileiros de Nova Iorque em "Calidris", ou na ficção tradicional, como o nomadismo forçado abordado no ótimo "Nomadland" e aqui, com os coreanos de "Minari". Ainda assim, o que se destaca nesse longa em relação aos outros é a abundância de signos que aterram (literalmente, a relação dos personagens com a terra é notória e importante à articulação de seus aprofundamentos) ao principal pilar dramático do filme: a noção de que a geração mais nova da família não deve abandonar suas tradições.
    Obviamente remete à questão do conflito geracional de "Era Uma Vez em Tóquio", de Ozu. Claro que a desfeudalização do Japão na Era Meiji tem pouco a ver com a imigração coreana para a América do Norte, mas traçam-se paralelos entre o clássico da década de 50 com os embates vividos por cada um dos membros adultos da família: a avó tentando reeducar o paladar dos netos com o minari plantado por ela, o pai tentando capitalizar em cima de sua cultura para enfim oferecer o american way of life aos filhos, a mãe obrigada a ceder a escolhas do marido e ao padrão de vida rural que ela procurou evitar ao longo de toda a vida.
    É uma história constantemente contada, mas "Minari" demonstra que toda revitalização da mesma tem muito de novo a oferecer.

23 - Sofá

    Para além das referências à Nouvelle Vague, Bruno Safadi elabora seus simbolismos do jeito mais concreto possível com esse novíssimo apelo ao experimentalismo no cinema de retomada em algo que só poderia ser descrito como um Tavinho Teixeira não-escatológico. Sua excentricidade é ainda mais destacada diante de um elenco claramente longe de sua zona de conforto: as chanchadas higienizadas da Globo.
    Diante disso, Ingrid Guimarães e Chay Suede encenam uma das histórias mais entremeadas na sociedade a partir de um camp pluricolorista que, a princípio, não seria considerada adequada para retratar um problema tão sério quanto a gentrificação urbana. Porém, momentos pontuais do filme justificam escolhas experimentais de montagem, aspecto, granulação e discurso, dado o contraste entre os protagonistas marginalizados e o prefeito do Rio - um meio termo ultrapopulista entre Paes e Crivella - que, apesar de maniqueísta, dentro da cosmologia do filme e dos padrões de linguagem dos dois políticos retratados nessa única figura, é mais realista do que o esperado.
    Nem sempre surge essa grande riqueza do filme que é a quebra de expectativa em relação à habilidade de Safadi de manter o ritmo da encenação desde as situações mais burlescas até as mais viscerais (todas sempre caricatas), até porque por boa parte do longa fica bem claro que o diretor ainda não achou bem seu autorismo (tá mais pra pegando emprestado o do Bressane), mas quando surge a oportunidade, desencanta na fábula social. Uma pena que isso não signifique a manutenção da unidade dramática, até porque cede à tentação de amarrar o realismo fantástico ao universo real, vulgo as colagens de manchetes que a protagonista acha no terreno de sua casa, em que o nome de Paes é visível, mas em nenhum momento tira a profundidade da cena final.

22 - Mank

    Comete erros da mesma espécie daqueles denunciados por mim em "Coringa": retrata uma história que tem em sua natureza a revolução de uma arte, mas Fincher escolhe os piores alicerces à narrativa dentro desse contexto, construindo um longa em que "medíocre" e "genérico" serão os adjetivos mais gentis dirigidos ao mesmo. Daria até pra forçar a barra dizendo que emula Welles diante da maneira com que Fincher incorpora com tanta naturalidade a mentira ao filme (o que também não faz nenhum sentido, considerando que o roteiro trata Welles com tanto desprezo), mas dessa falsidade nasce uma artificialidade nociva que se perpetua até o final, como se um alienígena viesse assistir a filmes e quando, tentasse recriá-los, seguisse uma cartilha que detalhasse como um filme é feito na Terra.
    Pior ainda quando nota-se a maneira com que Fincher parece ter esquecido de seu autorismo, uma vez que por mais de uma década o mesmo foi praticamente terceirizado por Aaron Sorkin. Assim, basta a ele filmar de um jeito que ressalte qualquer coisa, não necessariamente com enfoque na ação que supostamente o diretor deseja, mas simplesmente qualquer coisa, desde que aparente motivação. Chega a ser triste essa autoindulgência que posteriormente poderá ser justificada no mesmo naipe de comédia de erros que envolve a figura do Tommy Wiseau. Algo que demonstra certo desinteresse ao próprio cinema, podendo muito bem ter transposto a história num livro mas não cede a outro formato por pura vaidade (que dentro do nicho da cinefilia ainda ousam chamar de "perfeccionismo").
    Então que artifício(s) absolveria(m) todos os crimes de Fincher para um filme tão tragicamente mal construído aparecer numa posição relativamente alta dessa lista? Apesar dos pesares, para a surpresa de ninguém, "Mank" é um deslumbre no campo técnico, considerando que o digital tão amado pelo diretor é perfeitamente empregado aqui, seja nas raras ocasiões em que a mentira é verdadeiramente justificada e aprofundada, como no uso de CGI para os animais de Mayer, seja na elaboração a fotografia preto-e-branco mais interessante já composta desde "Vidas Secas", do Nelson Pereira dos Santos, o que nesse caso pode até surpreender, considerando o quão pouco empregado o digital é para filmar preto e branco de forma propositalmente tradicional (pra ser justo, "Sertânia" do Geraldo Sarno também é magistral nesse sentido, esquivando-se do fetichismo que a película P&B nutre para muitos cineastas).
    O mesmo vale para a força dramática da epifânica cena do jantar na casa de Hearst, com toda a revelação de Mankiewicz quanto às figuras retratadas em seu roteiro. Uma pena haver o fatalismo que sugere de que Mank só demonstra vida quando tem uma recaída em seu alcoolismo. Fora esse detalhe suprainterpretativo, é uma das melhores cenas do ano, merecendo destaque absoluto ao filme.

21 - Wolfwalkers

    É um longa que tenho dificuldade de desenvolver qualquer ideia sobre devido ao misto de familiaridade com especificidade que evoca. Apesar do meu contato com animação irlandesa se limitar aos curtas do David O'Reilly pro "Off the Air" do [adult swim], "Wolfwalkers" me encantou justamente pelo oposto ao que já estava habituado: seu estoicismo. É um longa conduzido única e exclusivamente pelas virtudes dos protagonistas. 
    Por mais que o vilão não acredite numa moral secular, também entraria nesses méritos pela maneira com que lida com toda situação seguindo certa razoabilidade dentro da realidade em que está inserido - o burgo ambientado está inchado e insalubre, expandi-lo é a única opção possível pra manter a dignidade do lugar e se o caminho pra isso for queimar a floresta, que assim seja, tudo tem seu lado justificável e carregado de certas virtudes. É da capacidade que o estilo de animação empregado têm de reforçar essa bondade praticamente inata de todos os personagens, mesmo que cada um à sua maneira (não necessariamente usando dessa bondade do jeito mais inteligente possível), que "Wolfwalkers" é uma das melhores animações do ano.

20 - The Woman who Ran

    Não é como se pudesse esperar outra coisa vindo do Sangsoo. A trama do encontro de uma mulher com três amigas ao longo de uma tarde não tem nada de espetacular, sempre caberá ao diretor adicionar identidade aos diálogos mundanos. Por acaso, é um dos filmes mais bem encenados do Sangsoo justamente porque aqui ele não precisa mais fazer muita coisa.
    A experiência do elenco, principalmente da Kim Min-hee, quanto ao autorismo do diretor agora já é suficiente pra tocar o ritmo do filme sozinho sem grandes interferências da câmera, que aqui passa quase o tempo todo estática e sem dar nenhum zoom, o que é raridade em sua filmografia. Algo que também diz muito sobre como seu público foi se educando à medida em que a carreira de Sangsoo foi acompanhada por muitos para chegar nesse ponto em que podemos, intuitivamente, focar nos pontos da tela de onde as ações normalmente virão, por mais sutis que sejam. Até mesmo metalinguísticos, como nas sequências da protagonista acompanhando a conversa das amigas com vizinhos através dos videofones dos apartamentos visitados.
    Esse sim é um filme sutil, talvez o mais sutil do diretor, em que o diálogo parece mais trilha sonora, algo que merecia ser escondido no fundo para dar prioridade ao imagético, talvez por isso que seja verbalmente tão fático, com pouquíssimos diálogos que realmente levarão a qualquer progresso narrativo. De pequenos gestos, um aceno com a cabeça, um carinho recusado, a maneira com que cada uma das coadjuvantes descasca uma maçã, o média vai sendo processado brilhantemente tendo pouco a nenhum foco no diálogo. Um importante lembrete de que cinema é, acima de tudo, imagem numa época em que todo audiovisual é regido por verborrágicos.
    Ao fim de 75 minutos, Hong Sangsoo mais uma vez reitera que é o homem que melhor dirige o feminino no cinema desde Zulawski

19 - Never, Rarely, Sometimes, Always

   Quem melhor falou sobre esse filme no mundo todo deve ter sido o Filipe Furtado. Hittman, que vinha de filmes passados que sugerem ao espectador o exercício de pensar "então assim seria um Korine mumblecore?", surge com um drama naturalista cimentado na cumplicidade de duas primas para realizarem um aborto que expõe sua potência narrativa não somente pela temática sensível (e pela sensibilidade com que é articulada), mas também a partir de pequenas negociações que cada uma tem que lidar para tudo ocorrer conforme o planejado, sendo, em suma, um filme daquilo que Furtado chama de "políticas da vida".
    Dessa premissa, toda a subjetividade normalmente encontrada nos filmes de Hittman é elevada à enésima potência diante da dependência que a protagonista tem com sua prima para o acompanhamento de todo o processo e a tensão gerada por tudo isso impede que conversas sejam realizadas, cabendo ao público chegar às conclusões mais preocupantes que, num diálogo comum, não sairia com naturalidade.  Em alguns momentos isso é muito bem articulado, principalmente na cena da qual o título do filme foi retirado, em que muitas dúvidas são solucionadas apenas com o choro silencioso da protagonista. Por outro lado, omite-se mais do que deveria em relação aos personagens coadjuvantes, especialmente em relação aos familiares da protagonista, que explicitam seus sentimentos quanto à mesma mas as implicações disso são deixadas à deriva. Algo que não chega a comprometer a força dramática de um dos dramas mais importantes do ano.

18 - Soul

   De longe o filme mais explicitamente maduro da Pixar. Por mais que ainda tenha como público principal o infantil, de modo que não possa demandá-lo uma capacidade de abstração além da que suporta, o longa se aterra num existencialismo soft que o salva de se autosabotar não apesar do enredo mas por causa dele, devido à possibilidade de pender mais pra um extremo (o simplista vulgar ou o máximo erudito).
    Nesse ponto, a abstração do pós-vida ajuda bastante. É o suficiente para levantar o choque a um protagonista tão individualista e auto-centrado. Assim, o que traz à tona as qualidades do filme, é o contraste gerado entre esse cenário minimalista que domina o 1º ato e a complexidade estética da Terra que volta ser palco da trama para os dois personagens principais, ainda que a dinâmica tenha mudado radicalmente em função dos corpos encarnados.
    Da capacidade da personagem 22 de enxergar na Terra um empírico que, visto de cima, parecia enfadonho, a mentalidade de ambos se altera até proverem a si mesmos aquilo que lhes faltavam. Apesar de habitarem dois opostos naquele universo, coincidiam na carência de vontade à vida. Diante dessa tradicional epifania/moral da história apresentada em todo filme da Pixar, "Soul" não poderia ser muito diferente de qualquer outra animação do estúdio, mas se destaca pelo apelo visual que, como nunca antes, acompanha o estado psicológico dos personagens; Jung não aparece apenas como side gag.

17 - Mulher Oceano

   Me impressiona o quanto Djin herda na atuação alguns modismos da mãe. Não se pode falar o mesmo na direção em relação ao pai, é uma diretora que, em sua estreia, segue seus próprios passos a fim de provar de que de cinema não tem só o sobrenome. Dessa forma, traçando o caminho de duas mulheres interligadas pelo oceano, Sganzerla se sai muito bem, inclusive lembrando "High Life" da Claire Denis pelo jeito que tenta mostrar a energia que uma passa pra outra à distância pela linguagem corporal.
    E por mais que eu não queira questionar as habilidades de Djin enquanto atriz, dificilmente seria diferente do que expus acima: trata-se do mesmo corpo, a diretora encena no papel das duas mulheres e é justamente daí que explicita-se a lógica conexão entre as duas. Claro que buscam-se mecanismos narrativos para embasar os laços teoricamente arbitrários entre as duas, Ana e Hannah são nomes palíndromos e parônimos, mas vai muito além disso, como no discurso das mergulhadoras do Japão.
    O grande problema é não saber quando parar com as hipóteses e metáforas relacionadas ao mar ao ponto de alcançar um estado obsessivo de apresentação e decodificação desse signo tal qual poderia aparecer ao longo de um álbum completo da Adriana Calcanhoto. É evidente que a história caminha para o mar simbolizar as inquietudes das suas protagonistas, por mais que vivam realidades diferentes, mas não eram necessárias divagações sobre os ukiyo-ês de Hokusai, por exemplo. Entretanto, o final apresenta uma purificação daqueles espaços a partir da intuição das personagens por estarem cientes que cederão o espiríto coletivo ao oceano e isso é o suficiente.

16 - O Paraíso Deve Ser Aqui

    Passado o choque cultural do comprimento das roupas dos franceses, Suleiman enxerga no Ocidente tudo aquilo que já estava acostumado em Nazaré. A viagem, motivada pela necessidade de sossego devido à falta de respeito de seus vizinhos com o espaço pessoal do protagonista (não poderia ser mais claro quanto à questão Israel-Palestina pós-Pacto de Oslo), o diretor-estrela visita Paris e Nova Iorque e, com sua quietude observacional de um Harold Lloyd, explicita ao espectador o quão próxima as duas realidades realmente estão.
    Elia pisa justamente em território inimigo, geopoliticamente falando, então a priori não deveríamos sentir o choque de paralelos traçados entre o militarismo de vigilância/segurança nacional desses dois países com a IDF israelense. No entanto, o diretor explora perfeitamente a alienação de muitos ocidentais em relação à verdadeira natureza dos conflitos no Oriente Médio: mais americanos seriam pegos de surpresa com a cena da boate palestina no final do que com a cena da mercearia em Nova Iorque, em que todos os frequentadores estão armados, ao mesmo tempo em que esse mesmo espectador se assombra com as gravações do Hezbollah transmitidas pela CNN. Infelizmente, essa grande potência do filme, de desmascarar seus signos dramáticos e políticos a fim de chocar o público e mais tardes referi-los anaforicamente para mostrar ao mesmo que muito do que é vivido em áreas de guerra já é naturalizado por nós; também se mostra seu maior defeito, uma vez que algumas ideias mais simples não precisariam ser replicadas no terceiro ato.
    Apesar da falha e de suas consequências, como o destaque exagerado a cenas que poderiam ser facilmente descartadas, de modo algum isso tira a carga dramática de um Gabriel Garcia Bernal recebendo ligações de seu agente para dizer que seu amigo era um "palestino da Palestina, não um palestino de Israel" ou da relação entre o vidente que diz que a Palestina virará um Estado mas Suleiman não estará vivo para ver o fim da Revolução com a sequência final na boate de Nazaré ao som de "Arabyion Ana", uma canção da única estrela da Mazzika que compõe músicas dedicadas às gerações seguintes, enquanto Suleiman observa do bar a juventude que possivelmente verá seu sonho se realizando. Através de um escárnio cômico (apesar da agressividade política, esse talvez seja o filme mais divertido do ano) esperançoso, Elia constrói o filme do Mundo Árabe mais relevante para o Ocidente em muito tempo.

15 - Josep

     O afogamento das memórias do ex-guarda do campo de concentração franquista pelo tempo é o que justifica a crescente diminuição dos detalhes gráficos na animação especialmente em relação ao cenário. Dada essa sutileza, o filme só tem a crescer através da adoção dos próprios traços da figura encenada. O falecido cartunista catalão, Josep Bartoli, mais que sujeito a ser retratado em biopic, tem seu estilo empregado tanto para suporte à sensibilidade compatível aos sérios temas abordados como também com função de convite às novas gerações para conhecer seu repertório.

14 - Destacamento Blood

   Spike Lee opera aqui em quatro níveis: o uplifting cultural (termo usado por Sílvio Almeida no Roda Viva do qual foi o entrevistado em junho) dos negros estadunidenses, uma espécie de filme de ação com uma cadência rítmica inesperadamente lenta para o gênero e para o próprio diretor (considerando os atributos rothianos empregados na sua versão de "Oldboy"), o estudo de personagem envolvendo a questão da falta de assistência médica a veteranos de guerra paralelo ao comentário político sobre a perpetuação do imperialismo franco-americano no sudeste asiático; tendo como quarto nível a constante interseção dos 3 primeiros.
    Sobre o filme, Beatriz Viterbo foi a melhor a se pronunciar: "E onde queres metrificação, toma aí o verso livre". A direção de Lee converte a citada cadência lenta nas sequências de ação, nas duas épocas retratadas, apesar de contradizer com suas convenções, a um surpreendente realismo em relação à experiência da guerra se opondo à sua espetacularização, considerando, inclusive, que a mudança no aspecto do ecrã nas tomadas de flashback propositalmente invocam filmes como "Apocalypse Now!"e "Full Metal Jacket", que não são famosos pelo seu estoicismo. Parando pra pensar, é um longa muito inspirado em Samuel Fuller.
    Isso se repete em todas as camadas, como a deliberação dos bloods no passado sobre o ponto de vista do coletivo em relação à guerra que são forçados a lutar, uma vez que é a primeira vez que vi a figura de Martin Luther King ser abordada com tanto respeito mas indo além de seu viés pacifista/conciliador. Ainda mais diante do lapso de 50 anos em que cada veterano seguiu seu próprio rumo. Nesse aspecto, Delroy Lindo é de longe o mais interessante porque, de certa forma, resume todas as contradições nas quais o filme parece se basear: um negro com boné MAGA que se sente confortável em extravasar sua xenofobia ao povo de um país onde lutou um combate cuja legitimidade chegou a ser questionada por esse mesmo sujeito.
    A convergência dessas diferentes ideias é o exercício de reflexão em relação ao individualismo como pilar mais torpe do corolário liberal norte-americano e como isso pode bater de frente em assuntos que para determinados grupos deveriam manter unanimidade, como a questão da raça. Afinal, era um grupo cujos membros todos tinham as mesmas convicções, mas 5 décadas separados geram dor (no caso do personagem do Delroy e do luto não superado pela morte do líder do pelotão) e atrito suficientes para as únicas coisas em comum entre os 4 serem a ambição materialista pelo carregamento de ouro e as referências culturais da época. Dito isso, não havia elemento de coesão mais adequado a ser usado por Lee em seu longa do que o coletivista "What's Going On", do Marvin Gaye, que em 2020 teve seu reconhecimento eternizado também pela revista Rolling Stones, que o elegeu como melhor álbum da história.

13 - Assistindo à Dor dos Outros

 Watching the Pain of Others

   O repentino sucesso do livro de estreia da Kristen Roupenian, “You Know You Want This”, não surpreende ninguém, considerando que a época de lançamento do mesmo coincidiu com o início da popularização da discussão das temáticas abordadas pelos contos de Roupenian: masculinidade tóxica (“Cat Person” e “Nice Guy”), pós-verdade (“Os Corredores Noturnos”) ou separar o artista da obra (“Sardinha”). Curiosamente, temas mais obscuros no livro, como doenças potencialmente fictícias (“O sinal da caixa de fósforos”), também se tornaram consideravelmente discutidos ultimamente e uma das colaborações mais fortes a essa discussão foi o documentário “A Dor dos Outros” da Penny Lane, que também dirigiu o cômico “Hail Satan?”.

   O documentário sobre uma suposta doença de pele chamada síndrome de Morgellons, por sua vez, é discutido pela ensaísta francesa Chloé Galibert-Laîne em “Assistindo à Dor dos Outros”, que investiga os possíveis elementos sociais que interferem na opinião geral e de Penny Lane quanto a acreditar ou não nas pessoas que afirmam portar a doença.

   Num rico estudo de formato, ao não usar nenhuma outra filmagem além do que captura pela tela de seu computador, Chloé debulha a semiótica usada por Penny Lane para que o público viesse a sentir empatia por figuras de índoles e ideologias questionáveis enquanto busca se questionar quanto à metodologia que Chloé aplica para definir o que considera verdadeiro ou não. Ao mesmo tempo que o documentário procura traçar paralelos contundentes que possam relacionar o status de existência à síndrome com o perigo da liquidez proveniente da ilusão de popularidade em função do engajamento virtual e da pressão imposta a mulheres jovens em performarem uma eterna juventude, a cineasta passa por uma crise semelhante durante o processo de pesquisa para o documentário ao encontrar nela mesma sintomas da dita doença.

   Ao longo de meros 27 minutos toda aquela teia complexa de fatores capazes de sintetizar uma anomia tão única é desatada através de uma visão intimista e honesta em que julgamentos são postos de lado porque os erros aqui não podem ser tolerados; todo desvio à busca da verdade oferece riscos à mente de quem vai à sua procura. Nesse sentido, lembra bastante “Terra Plana” da Netflix, salvo o caráter sarcástico dos realizadores deste último. Não que Chloé seja condescendente, mas é empática às “pacientes” por reconhecer que a situação que se encontram é fruto de angústias externamente induzidas e as transformaram em servas de uma ótica que as atribuíram muita influência. Essa comunicação artificial deturpada já não é mais uma opção, é a única vida que conhecem e a escolha da diretora de concluir a obra em escancarar a falta de naturalidade naquelas interações foi a melhor possível por dar brechas ao início de uma nova camada de análises que somente o espectador poderá explorar.

 12 - Another Round (Druk)

    Pra um dos fundadores do Dogma 95, "Another Round", ironicamente, pode ser o filme mais sóbrio possível para Vintenberg. Numa estrutura hollywoodiana convencional, o dinamarquês explora, com um viés explicitamente kierkegaardiano, um experimento entre amigos envolvendo uma hipótese de que o ser humano adulto tem um déficit natural de álcool no sangue e que esse déficit deve ser diariamente anulado. Destacando-se por um nível de consistência narrativa que, salvo raras exceções, só os filmes do Zentropa conseguem manter, o acompanhamento dessa saga sobre o desespero humano e os apelos necessários para se equivaler às expectativas dos outros sobre você a fim de se prevenir um fracasso mais que natural (como eu disse, explicitamente kierkegaardiano), o grande trunfo desse filme é a catarse da cena final, um expurgo prazeroso das angústias do cotidiano através do mesmo álcool que, há pouco, destruía a vida daqueles homens.

11 - Martin Eden

   A simples ideia de um proletário analfabeto tornando-se utilitarista radical da noite pro dia por causa de uma mulher é fascinante por si só, mas essa sinopse de "Martin Eden" é apenas a ponta do iceberg da solidificação de Pietro Marcello como o grande prodígio do cinema italiano contemporâneo. São duas horas de um Straub-Huillet degenerado, um processo de autofagia por um protagonista que tem sede de explorar aquilo que mais detesta (à priori) ao ponto de destruir até seu físico - o terceiro ato remonta um Martin bem-sucedido mas ao custo de sua integridade física, deixando de ser o jovem atraente que outrora provocava, ao mesmo tempo, os sindicatos e as oligarquias.
    É uma autofagia, inclusive, que fere todos aqueles que estão próximos o suficiente para entender minimamente as intenções do protagonista. Em prol do niilismo, todos os seus relacionamentos operam com um curto prazo de validade, tirando o ex-colega de trabalho que logo torna-se vassalo do poeta utilitarista, possivelmente persuadido pela lógica da servidão inevitável que o protagonista extrai da obra de Herbert Spencer.
    Curiosamente, também, para algumas das pessoas de seu convívio sua mentalidade mantém-se enigmática, o que é de se esperar de um autor tão determinista quanto Jack London (cujo filme é inspirado pelo seu romance homônimo), visto que o primeiro ato do filme explora Martin como um estrangeiro naquele ambiente burguês. Desse modo, sua namorada, que em toda a sua vida só teve contato com a alta sociedade, apenas compreende a crueza dos pensamentos de Martin quando este lhe revela a pobreza da periferia da cidade numa das sequências mais ricas do ano, ao mesmo tempo revisitando o neorrealismo italiano por meio da inserção de trechos de arquivo documentais daquelas pessoas com o ultrarrealismo technicolor soviético de um "Vá e Veja".
     O contra-argumento que London tenta impor em seu livro é traduzido magistralmente ao filme: pior que tentar substituir uma lei natural por uma moral é ir na contra-mão àqueles que organizam essa tentativa. Óbvio que a manutenção do neoliberalismo desde a época que o livro foi escrito ajuda na atemporalidade da narrativa, mas os 16mm de Marcello potencializam tudo um pouco mais com uma granulação companheira da crueza de uma realidade desumana que o protagonista, infelizmente, passa a justificar. Uma companhia que se estende até os momentos finais do filme, um necessário encontro de Eden com a realidade que aprendeu a esquecer por causa dos ambientes que passou a frequentar.

10 - Entre Realidades (Horse Girl)

    Possivelmente a maior surpresa da lista, considerando que esse foi um dos lançamentos da Netflix que menos foi dada atenção no ano passado, principalmente devido à recepção de maioria negativa. Também me surpreende o Jeff Baena, diretor de "The Little Hours", o último filme B americano que, como diz Mariano Llinás, "antigamente costumavam fazer até de olhos fechados", ter sido capaz de gerar o filme mais dreyeriano do século até agora.
    "Entre Realidades", que retrata a gradual deterioração psicológica de uma mulher a partir da ideia de que ela é sua própria avó e de pesadelos constantes em que é abduzida. Diante disso, ao longo do filme, a personagem de Alison Brie, assim como em qualquer outro filme transcendental, tende ao sofrimento de prazo indeterminado. Quase como num processo de provação, cada nova situação que ela terá que passar apenas ajudará a agravar seu estado mental.
    A mise-en-scène tá sempre muito adequada a esse ideal, colaborando com enquadramentos cada vez mais fechados no rosto de Brie. Não necessariamente invocando claustrofobia, mas induzindo maior homogenia cromática, de modo que momentos como os episódios de delírio e derrealização espacial vivido pela personagem tornem-se mais verossímeis. De certa forma, assemelha-se muito com a martirização de Joana d'Arc no filme do Dreyer, principalmente pela maneira com que Baena manipula a perspectiva da câmera para amplificar a impotência da protagonista, ainda que mantenha saudáveis suas amizades por um período de tempo mais longo do que o esperado.
    Segundo Schrader, um filme transcendental se divide em "dia-a-dia", "disparidade" e "êxtase". Em "Entre Realidades",  o dia-a-dia do sofrimento da protagonista se agrava até ser encaminhada a um lugar onde tem uma longa disparidade da qual, enfim, revela o caráter transcendental do longa. Teoricamente, a êxtase não poderia ser alcançada devido à incapacidade da personagem de distinguir o que é realidade e o que é sonho, mas essa adversidade se propõe como uma nova camada de dia-a-dia a ser facilmente superada pela, agora inevitável, êxtase.
    Curiosamente, esse deve ser o primeiro filme transcendental em que o divino não se faz presente. Dado o laicismo da trama, o desafio da personagem apenas se eleva. Por essa condição de ter apenas a si mesma no universo inteiro, sua êxtase mostra-se tão edificante. Baena e Brie conseguem modular seu roteiro para extrair a máxima dramaticidade seu próprio transcendentalismo e, assim como em "A Palavra", de Dreyer, desenvolve um novo propósito a todos os elementos envolvidos, apenas modificando sua essência, mantendo a semelhança descrita por Schrader que o estilo tem com o aforismo zen de que montanhas serão montanhas antes e depois de atingir a compreensão total da filosofia em questão.

9 - É Rocha e Rio, Negro Léo

  Possivelmente o melhor filme de Gaitán desde "Exilados do Vulcão". Tenho uma particular dificuldade de apreciar o trabalho da franco-colombiana pela sua falta de equilíbrio entre substância e acidente dos signos de seus filmes, algo que parece ter herdado de seu tempo como diretora de arte do Glauber Rocha mas não consegue aplicar tão bem enquanto diretora, como foi o caso de seu outro lançamento de 2020, "Luz nos Trópicos".
    Dessa forma, "É Rocha e Rio, Negro Léo" retoma as melhores qualidades do cinema de Gaitán a partir de seu caráter deliberativo e intimista. Nada mais é do que um monólogo de 3 horas do artista (que, se dependesse de mim, duraria bem mais), imersivo o suficiente para apenas nos lembrar de que aquilo é um filme quando anuncia-se o fim da bateria da câmera e da memória do disco rígido. No entanto, a importância do discurso avança para além desses momentos pontuais, tornando este outro grande filme político nacional do fim da década.
    Visto que é um ambiente confortável e familiar (o cantor é genro da diretora), Negro Léo não se permite restringir nenhuma ideia que acredita ser digna de discussão. Portanto, são 3 horas em que orientalismo, produção artística, a ascensão do neopentecostal no mundo subdesenvolvido, o mito da democracia racial e como a esquerda brasileira deverá se articular mirando numa vitória nas próximas eleições gerais são abordados sem censura mas com uma coloquialidade convidativa que, com a ajuda da câmera fixa majoritariamente na altura dos olhos do sujeito a ser escutado, Gaitán estimula o espectador a topar o exercício de se colocar no lugar de uma visita disposta a passar a tarde naquele ambiente. O fato do filme, de certa forma, começar antes de realmente começar, com a cena de Negro Léo abrindo o portão do prédio de apartamentos onde mora e dizendo pro filho "hoje a vovó vem filmar" colabora fortemente para a composição dessa atmosfera
    A pura análise do zeitgeist nacional por uma das figuras que melhor o entende devido à constante presença do artista em diversos meios sociais discrimina as duas faces do cinema nacional independente: uma geração mais nova de diretores e críticos obcecados no pensar cinema (eu incluso) e os veteranos que acumulam vivência e coragem suficientes para arriscar uma captura cinematográfica do pensar (além de Gaitán também incluo Jean-Claude Bernadet, que na Mostra de Tiradentes, lançou o corajoso "#eagoraoque" com o filósofo Vladimir Safatle).

8 - Red Post on Escher Street


    Típico Sion Sono, minha justificativa para esse ser o oitavo melhor filme do ano poderia se encerrar aqui. É notável a consistência do brilhantismo do japonês quando o assunto é a metalinguagem. Ainda que, em muitos momentos, ceda um dadaísmo barato, Sono majoritariamente preenche seu longa com uma terna consagração ao ofício da encenação. Num filme recheado de pantomima, cada gesto falso traz verdade em si, o que acaba sendo potencializado com o encerramento fora de set, com as atrizes de ambos os filmes, o que assistimos e o fictício, que é desenvolvido ao longo do primeiro, correndo junto a Sono entre cruzamentos do centro de Tóquio enquanto são perseguidos por um policial de verdade.

7 - Ferrara de 2020 (Tommaso/Siberia/Sportin' Life)

  2020 foi o ano de Ferrara expôr ao mundo sua autocrítica dividida em três partes. Sua relação simbiótica diretor/ator com Willem Dafoe torna-se mais íntima e, segundo um entrevistador que aparece em "Sportin' Life", o cinema de Ferrara, que já era radical, radicaliza-se ainda mais. 
    Não só radical como também fatalista. Ao mesmo tempo em que a persona conjunta Ferrara-Dafoe dos dois filmes fictícios luta único e exclusivamente para tornar-se uma pessoa melhor, superando seus vícios e inseguranças, o receio pela punição proveniente do metafísico assombra a mente do protagonista e daqueles que o mesmo está representando. Especialmente em "Tommaso", com todas as dissonâncias cerebrais relacionadas à sua própria morte e a de sua família.
    Em "Siberia", por outro lado, todas aquelas tragédias já não são mais hipotéticas, com o protagonista enxergando suas companhias apenas num plano onírico, visto que o ambiente apocalíptico (possivelmente uma fusão dos universos de "Tommaso" e "4:44") não agrega nada ao emocional da persona de Clint além de solidão. Voltando-se, então, para a psicodelia existencial de sua mente, Ferrara promove aquilo que nunca pensaríamos que ele algum dia chegasse a fazer: confrontar um de seus maiores traços autorais, a masculinidade.
 
    Clint tem todo o tempo do mundo, visto que, de certa forma, é o último de sua espécie. Nesse tempo ele confronta sua figura paterna, com quem ele era mal resolvido por toda a vida até então. Apesar de destrutivo ao protagonista, esse embate enriquece exponencialmente a trilogia do Ferrara de 2020 a partir desse ponto. A atmosfera sem remorso de "Tommaso", que inclui Dafoe se crucificando em praça pública, evapora para dar lugar a esse purgatório consequente às suas heresias, entre outros pecados. 
    Traçam-se fortes paralelos dessa nova mentalidade de Ferrara com a pandemia, tema central de "Sportin' Life". A própria cena de Dafoe dizendo que "Deus retirou de nós tudo aquilo que idolatramos" para, logo depois, citar amenidades materialistas que engrandecemos em função de coerção social serve de purgatório, agora que o diretor e o ator estão em pé de igualdade ao espectador, tanto no contexto específico da cobertura dos shows da banda de Ferrara no festival de Berlim quanto no contexto geral que a não-ficção oferece (retornando à tona a discussão sobre a morte como única instituição verdadeiramente democrática). Ferrara de 2020 trata-se de uma unidade estilística em constante desenvolvimento.

6 - City Hall

   Uma ode de Wiseman ao Estado Democrático de Direito. Dividindo-se em duas frentes, ora acompanhando os deveres públicos do prefeito de Boston, Marty Walsh, ora dissecando o funcionamento de cada departamento de serviços públicos municipais, O documentário gentilmente humaniza aquilo que normalmente é referido como "máquina" estatal, sempre se esquivando do enfadonho burocrático para emoldurar o indivíduo por trás de cada pequena ação que mantém a qualidade de vida dos cidadãos da cidade portuária.
     Utilizando-se de uma abordagem documental tradicionalíssima da qual Wiseman segue adotando mesmo depois de 5 décadas de carreira, as audiências públicas e os turnos dos servidores são intercalados com tomadas externas de cartões postais da cidade e também áreas residenciais que não chegam a chamar atenção por algum razão especifíca. Parafraseando Michel Gutwilen, essa escolha denota que apesar do local onde as decisões políticas são feitas ser naqueles lugares fechados, suas consequências são sentidas, principalmente, fora deles.
    Chama-se atenção o documentário abordar justamente a melhor gestão municipal da história de Boston, ainda que também não se venda como propaganda política ao prefeito Walsh. Por mais bom gestor que o democrata realmente seja, o diretor desse filme faz questão de reforçar de que o cidadão se encontra em pé de igualdade ao chefe do executivo local em relação a quem é responsável pelo desenvolvimento da superestrutura. É uma semiótica que pode soar piegas mas é honesta e muito bem coordenada devido ao explícito cuidado que essa administração possui com a manutenção dos direitos civis.
    Com 90 anos de vida, Wiseman novamente comprova o porquê de ser considerado o melhor documentarista americano em atividade. Caso seja seu filme de despedida, "City Hall" é, possivelmente, o mais adequado possível. Para um sujeito que passou a vida estudando instituições coletivas, esse retrato inédito da mais onipresente delas carrega ares de magnum opus.

5 - Palm Springs

    Uma premissa tão saturada na indústria tende a ser muito difícil de se reinventar e, quando consegue, normalmente se deve à ressignificação cultural desses motes que se repetem dependendo do lugar de onde a premissa é novamente proposta. Porém, "Palm Springs" consegue atribuir ao subgênero do loop temporal novos elementos que apenas o enriquece, ainda que trabalhe arquétipos e cenários não muito diferentes daqueles utilizados para esses filmes. 
    Sua relação com o artifício da dor, por exemplo, chama muita atenção por provar-se ser uma das maiores forças motrizes para o comportamento dos personagens, sendo, inclusive, capaz de estimular toda uma nova moral para o protagonista, uma que busca evitar qualquer possível conflito. A permanência demasiada do personagem do Andy Samberg no loop, ainda que alcance uma quase onisciência daquela cosmologia, visto que ele está lá tempo o suficiente para não se lembrar como era a vida antes daquele dia (o que também justifica seu medo de sair do ciclo), o leva a uma zona de conforto niilista de que o melhor a fazer é justamente fazer esforço nenhum. 
    Revela-se, posteriormente, que essa conclusão é consequente à dor que sentiu nas sessões de tortura em ciclos passados, ministradas pelo personagem de J K Simmons, que foi induzido a entrar no loop pelo protagonista. Essa tortura física, para o coadjuvante, é a única compensação capaz de elaborar para sua própria dor psicológica de não ser mais capaz de ver seus filhos crescerem.
    A maior virtude do filme, nesse sentido, é a falta de necessidade de redenção dos protagonistas ao mesmo tempo em que encaram uma situação de utopia do encontro. Disposto num niilismo romântico, a relação dos dois não rege nenhuma melhora do caráter de ambos, que já aceitam quase que prontamente a condição de serem os únicos seres presos no loop, e é complementada pelo alívio de nenhum indivíduo externo com relação a eles carregar bondade consigo, salvo a irmã da personagem principal. 
    Protagonista essa que, inclusive, possui a importante função de ponte entre o público e o acidente temporal em que se envolve: numa cosmologia esteticamente imaculada, priorizando o multicolorido em contraste ao deserto uniforme, indivíduos tão distintos entre si são muito bem-vindos, especialmente como fio condutor de apresentação a tal cosmologia. No entanto, a aproximação de mentalidade dos dois começa a atrapalhar esse princípio da unidade estilística, ainda que mostre-se como estratégia de introdução a uma promissora camada de absurdismos que só é freada ao confirmarem a ausência de misticismo do universo. De resto, o longa mantém perfeitamente sua coerência dentro de sua proposta.

4 - Stump the Guesser/Rabbit Hunters

   Meu primeiro contato com obras do Guy Maddin e dos irmãos Johnson. Apesar disso, são claras as semelhanças idiossincráticas com Matthew Rankin, outra figura proeminente do cinema canadense contemporâneo, nos dois curtas, que juntos mal dão 25 minutos e operam como homenagem às referências de cineastas que os três realizadores tiveram.
    Apesar da enorme subjetividade que o segundo carrega com a atuação primorosa de Isabella Rosselini como Fellini, resgatando a natureza onírica de alguns de seus filmes do neorrealismo pink, inclusive lembrando a maneira com que Murakami escreve sobre o passado, o primeiro curta é significativamente melhor. Em "Stump the Guesser", o construtivismo soviético é revisitado e fundido à estética steampunk de modo a ditar o tom da narrativa que pendula entre o cômico e o trágico à medida em que cada extremo das duas estéticas é alcançado.
    Para alguém da minha geração, é impossível não relacioná-lo ao desenho "Flapjack", que tem uma semelhante roupagem de explorar pessoas inocentes que têm sua moral corrompida. Maddin, no entanto, não se restringe em relação aos temas trazidos à narrativa. Seu cinema é composto de muita estranheza e diferente do que normalmente acontece em qualquer filme, não é a temática que se fortalece pela mise-en-scène, mas a mise-en-scène só tem suas peculiaridades justificadas pelos assuntos invocados. Essa inovação (pra mim, pelo menos) é o que destaca tanto o curta e o que me faz ansiar a assistir mais filmes de Maddin e dos Johnson.

3 - Sertânia

     Geraldo Sarno admite que sonha em preto-e-branco, tal qual os cegos, numa Mesa Redonda do Festival Ecrã. Essa foi sua justificativa para a escolha do dicromático estourado em "Sertânia". Seu último longa, um tributo ao Cinema Novo, ao sertão de onde vêm e à própria carreira de mais de 50 anos, se resume a um onírico revisionismo do cangaço de Guimarães Rosa, mas suas referências mostram que o filme pode ser muito mais que isso.
    Pegando emprestado recursos de outros cineastas e outras linguagens, Sarno compreende uma obra que engloba as profundezas do Brasil autóctone. É como uma versão sertaneja de "Somos o Brasil", de Nelson Rodrigues: a quebra de expectativa de um espetáculo irreplicável por Garrincha em 62 que, segundo Nelson, explicita a genialidade do brasileiro como povo, conversa diretamente com a cena de Jesuíno atirando (releitura de Antônio das Mortes atirando no filme homônimo que, por sua vez, é releitura do tiroteio de "Outubro", de Eisenstein. Reciclagem de uma reciclagem que apenas enriquece o cinema), em que a arma emperra e o ator sai do personagem enquanto o diretor de fotografia, dentro de um personagem inédito, dialoga com ator. 
    O onírico do filme, proveniente do estado febril de Antão, à beira da morte, retoma lucidez nesse momento e, dessa lucidez, torna-se visível a existência de um universo conjunto da filmografia de Sarno: "Viramundo" é visualmente citado e Delmiro Gouveia é chamado pelo nome, não há necessidade de explicar suas relações com "Virgulino/Lampião". O resgate da memória de Antão também é o resgate do diretor com sua própria carreira. Invoca Cervantes, o Aedo homérico da Odisséia, Coppola em "Apocalypse Now!"; ficção torna-se documentário e vice-versa.
    Como bom literato, Sarno expressa seu autorismo não apenas a partir de sua vivência que dita o tom agressivo de "aura de enxofre", citando Igor Nolasco, de "Sertânia" como anti cinema de gênero, apesar dos flertes com o western de Ford, como também ressignifica as obras dos artistas citados anteriormente para articular as ideias que o longa ousa propor em relação à religião (Edgard Navarro como Antônio Conselheiro foi uma surpresa mais que agradável), dominação homem sobre homem, traição e levante contra a autoridade. Nesse sentido, Geraldo se aproxima da crueza também adotada por Kanye West em seu álbum "Yeezus", que articula as mesmas temáticas, apesar das divergências nas opiniões.
    Como em "Bound 2", faixa de encerramento de Yeezus, o final de "Sertânia" abandona sua raiva para celebrar o que há de apaixonante no mundo. Para Sarno, é uma festa junina, uma filmagem de arquivo onde se ouve "apesar dos problemas, somos todos brasileiros" (uma festa junina particularmente mais ufanista pois era 2018, ano de copa. Os cavalheiros da quadrilha podem ser vistos vestindo camisas da seleção). O diretor, que foi próximo a Alfredo Guevara, criador do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos, compreende a importância do audiovisual para a construção de qualquer identidade nacional, cujo Brasil atualmente não possui uma solidificada. Na medida do possível, o veterano do cinema nacional ainda luta pra isso e seu último longa é o que vai mais direto nessa intenção.

2 - Não Haverá Mais Noite

   Num reducionismo proposital, começo meu comentário sobre o longa dizendo: quem poderia imaginar que um dos filmes mais aterrorizantes já feitos seria um react de uma hora e meia?
      Nesse filme-ensaio de Éléonore Weber, sua narração acompanha gravações de missões de execução de pilotos de drone franceses e americanos no Afeganistão, Iraque e na Síria. A partir desse voiceover, o espectador toma conhecimento de fatos apavorantes sobre a evolução bélica tanto num contexto histórico, de que os equipamentos e as tecnologias hoje tornam possíveis uma força bélica perfeita, quanto no contexto pessoal dos pilotos "enviados", que já não podem aceitar a possibilidade do medo, do erro e de sua própria humanidade; citando um dos testemunhos colhidos por Weber, "é fácil demais" o exercício da guerra às potências que desenvolveram a opção do combate à distância. 
    A partir dessa condição, toda ação a ser feita no campo de batalha que, para os militares, devido à falta de aproximação, pode ser considerada mera abstração, possui todos os elementos para encaminhar suas mentes a um perigoso impessoal em que a vida humana é relativizada em nome do resultado. É aquele conflito proposto por Clint em "Sniper Americano", onde a academia dos Seal drena a humanidade do soldado para que torne-se uma máquina de matar, que só notará o quanto dele se foi quando (e se) volta a um meio pacífico, mas real. 
    Pode-se culpar às câmeras entálpicas, que não revelam o rosto de nenhum daqueles corpos a serem abatidos (algo que se assemelha à voluntária impessoalidade que os jogos do estúdio Playdead empregam), à frieza de Weber a relatar algumas situações mostradas na tela cujo único nome possível a ser dado a elas é misantropia (e a essa altura a diretora talvez já carregue em si certa cumplicidade por narrar o projeto não necessariamente com um tom crítico à OTAN, por exemplo, mas apenas com um descritivismo pomposo normalmente empregado em documentários da Discovery sobre o meio ambiente) ou à decupagem simples daqueles trechos que limitam a noção do público sobre um antes e um depois de tal morte premeditada por governos ocidentais. 
    De qualquer forma, a falta de humanidade que o filme insiste em prover é uma das estratégias mais inteligentes para, justamente, induzir essa humanidade que falta no imagético aos espectadores. É um filme praticamente perfeito naquilo que propõe pela síntese consequente à banalização da própria banalização de uma guerra contemporânea pelo que é na prática: em que qualquer peso ideológico de lideranças nacionais é substituído pela indiferença de homens já aprenderam a esquecer o que faz deles e d'outros meros seres humanos.

1 - O Fim da Viagem, o Começo de Tudo (Tabi no Owari Sekai no Hajimari)

    Kurosawa vinha de um processo de gameficação de sua filmografia desde "Beautiful New Bay Area Project". Seu último longa, no entanto, caminha na contra-mão da tendência citada. O fascínio gerado por "O Fim da Viagem, o Começo de Tudo" a quem o assiste é despertado pelo processo de derrealização sofrido pela protagonista quando precisa encarar a solidão imposta por um ambiente hostil numa viagem a trabalho somada à maneira com que Kiyoshi Kurosawa é capaz de incorporar nessas barreiras de linguagem e territorial um sobrenatural implícito já muito familiar em sua filmografia.
    Salvo raras exceções, tudo naquele ecossistema apresenta hostilidade a Yoko, como os habitantes do povoado do lago, que limitam sua privacidade, a diferença da moral dos costumes entre as duas culturas, o desconforto físico que o brinquedo de feira oferece (e é forçada a permanecer nele pela equipe de filmagens de seu programa) ou a conduz rumo à hostilidade, como o gato no bazar da capital que ela vai atrás com uma câmera mas que a força a se esconder da polícia uzbeque. O diretor enfatiza o trauma desenvolvido pela insalubridade das relações de trabalho de Yoko (a integridade da câmera da televisão possui prioridade sobre a saúde da repórter), somado à questão do ambiente já mencionada, ao manter Yoko sempre em primeiro plano, enquanto que a atuação de Atsuko Maeda foca na transmissão do medo à câmera, tanto que, nos dois primeiros atos, apenas expressa alívio nos momentos em que contata seu namorado, o mais próximo que tem de uma família.
    A força dramática do longa se expande pelo esforço do cineasta em explicitar o contraste no tamanho dos corpos de Yoko com os uzbeques. A cena do bazar no interior deve ser a mais clara nesse sentido, monitorando a protagonista em plano e contraplano enquanto ela penetra o fluxo de pessoas que vêm da direção contrária à medida que este aumenta, dispondo, à contraplano (exclusivamente nesse caso, de frente à atriz) as pessoas que acabaram de passar por ela virando-se para observá-la, à medida em que se encolhe sob tais olhares, cujo terror é elevado à enésima potência com suas cenas seguintes, retratando a tentativa de Yoko em retornar ao hotel, quando literalmente teme pela própria vida e encontra, pela primeira vez, o bode que alegoriza sua jornada. Se a emulação da claustrofobia é um dos recursos mais ambicionados por diretores para denotar desconforto, Kurosawa, assim como os pedestres do bazar, vai na contra-mão, decupando uma das sequências mais agorafóbicas do século.
    Não é à toa que a estratégia é repetida sob inúmeras variações ao longo do segundo ato, como momentos de provação a Yoko, dos quais ela não necessariamente amadurece, apenas voltando a ganhar confiança ao entrar num teatro e projetar, no palco, sua idealização de uma apresentação que fará quando voltar ao Japão que, segundo ela, "irá determinar o resto de sua vida". Posteriormente, descobre-se que o teatro foi construído por japoneses aprisionados pelo Exército Vermelho na 2ª Guerra. A semiótica de Kurosawa nesses dois momentos fundamenta a ideia de que a mínima familiarização da protagonista com sua origem regenerou um norte para seu psicológico.


    Kurosawa logo subverte isso, invocando sua mise-en-scène agorafóbica como armadilha para diminuir aquela Yoko momentaneamente confiante. "Pode ser perigoso aqui, mas continuarei filmando", ela diz quando se perde da equipe de filmagem, ainda que tenha sido estimulada pelo documentarista do grupo, que a adverte que uma câmera na mão muda sua perspectiva em relação ao seu redor. A alternância de diegeses do design de som e a trilha sonora em escalas menores ditam a atmosfera que acompanha a natureza sobrenatural da derrealização espacial. 
    No âmbito pessoal, é um clímax que mexeu comigo, visto que meu maior medo é me perder em locais abertos, de modo que eu possa assegurá-los do fato de que o diretor transcreveu à tela brilhantemente esse medo, especialmente potencializado pela barreira do idioma. Ainda que a câmera de Kurosawa ofereça onisciência visual à situação, entendemos tão pouco quanto Yoko sobre a articulação dos indivíduos que a ameaçam.
    Nasce, então, uma revelação epifânica mostrada à repórter por um policial uzbeque. A consequente vergonha de reconhecer seu medo como irracional, beirando o xenofóbico, a faz repensar sua relação com aquele meio, como se pode ver pela ligação que tem com o namorado mais tarde naquele dia. Kurosawa, enfim, encerra o melhor filme de 2020 com a concretização da epifania de Yoko através da apresentação que ela idealizou no teatro mas, agora, em um espaço aberto, provendo à protagonista uma mise-en-scène imaculada de qualquer elemento perturbador. A catarse colossal que procede o trauma, expurgando todos os males vividos pela personagem naquele período. Decerto, aquilo que todos esperamos a partir da imunização contra mais de um antígeno em atividade.
 
 

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