Mandy - gamificação do terror e contracultura
No mais novo e mais psicodélico longa de Panos Cosmatos, "Mandy", acompanhamos a busca do lenhador Red Miller (vivido por um Nicolas Cage tão bom quanto em "Con Air" e "Despedida em Las Vegas") por vingança à morte de sua namorada Mandy Bloom. No mais clássico estilo "jornada do herói", o diretor evidencia inúmeras características que remetem aos jogos de RPG do período em que a história se passa, sempre recheada de violência.
Indo de pequenos detalhes como a fonte dos cards que precedem 1º, 2º e 3º atos, respectivamente, até a própria estrutura narrativa conservadora da trama, tudo parece indicar inspirações de "Dungeons & Dragons" e "Shadowrun". Mescla-se a isso, um discurso contracultural em relação ao proferido por Ronald Reagan no início do filme que acaba sendo representado pela seita bizarra do egocêntrico antagonista Jeremiah Sand.
Com todos esses elementos, somada à sua estética totalmente sintetizada e alguns traços punk semelhantes à franquia "Mad Max", "Mandy" acaba se tornando a síntese da homenagem oitentista que vem sido construída na mídia popular mundial ao longo da última metade dessa década. No entanto, o longa não cede muito ao status de caricatura, como 90% dos diretores contemporâneos fariam com esse tipo de material.
Esses momentos em que o filme cede ao caricato são justamente aqueles em que faltou uma dose de realismo para compensar a suspensão de descrença que o fator fantasia propõe à história. Enquanto a jornada do herói de Red é muito bem executada, com motivações de ambos os lados sendo evidenciadas desde o início e todas as mortes fazerem sentido, sentimos falta de um fio condutor que liga todos esses pequenos vilões. Em momento nenhum nos é apresentado a um elemento que explicite a razão de Red saber exatamente onde esses estarão para que ele possa matá-los.
Por outro lado, em termos técnicos, o filme sucede ao que propõe: a fotografia incandescente e o design de som distorcido faz jus à temática enquanto que a direção de arte ajuda a localizarmos no noroeste pacífico, assim como colabora pra compreensão do espectador as intenções e da sociedade de Jeremiah e ela em si. A trilha sonora sintética também não fica atrás e a montagem é incrivelmente assertiva, mostrando novamente que Cosmatos tem visões que se concretizam de uma maneira completamente certeira raramente vista entre grandes realizadores contemporâneos.
É quase impossível dizer se as inserções animadas puramente psicodélicas estão bem encaixadas no enredo por serem constituídas de mera abstração dos "sonhos" de Red que, apesar de serem dignas de contemplação, podem vir a ser desnecessárias. Ainda assim, ela colabora para a temática contracultural do filme que contraditoriamente faz justamente o que aparece nas entrelinhas do discurso de Reagan, compondo, assim, a grande sacada de Cosmato em retratar uma violência tão gratuita e, ainda assim, tão razoável. Com isso, ela fecha com chave de outro a exploração de um universo cinematográfico que, apesar de não ser original, consegue ser incrivelmente rico por flertar com o mundo real.
"Mandy" pode não ser o melhor filme do ano, mas é com certeza uma das obras audiovisuais mais inventivas e compromissadas de 2018. O 1º ato é bem sucedido em apresentar a cosmologia do longa e preparar terreno para uma das tramas mais alucinantes do gênero, assim como os outros dois atos exploram maravilhosamente o universo construído ao redor. A mise-en-scène é soberba e as referências narrativas são evidentes. O que torna o filme razoavelmente desvirtuoso é justamente a ausência de um elemento que una todas as virtudes citadas. 9/10.