segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Mandy - gamificação do terror e contracultura

Mandy - gamificação do terror e contracultura

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   No mais novo e mais psicodélico longa de Panos Cosmatos, "Mandy", acompanhamos a busca do lenhador Red Miller (vivido por um Nicolas Cage tão bom quanto em "Con Air" e "Despedida em Las Vegas") por vingança à morte de sua namorada Mandy Bloom. No mais clássico estilo "jornada do herói", o diretor evidencia inúmeras características que remetem aos jogos de RPG do período em que a história se passa, sempre recheada de violência.
   Indo de pequenos detalhes como a fonte dos cards que precedem 1º, 2º e 3º atos, respectivamente, até a própria estrutura narrativa conservadora da trama, tudo parece indicar inspirações de "Dungeons & Dragons" e "Shadowrun". Mescla-se a isso, um discurso contracultural em relação ao proferido por Ronald Reagan no início do filme que acaba sendo representado pela seita bizarra do egocêntrico antagonista Jeremiah Sand.
   Com todos esses elementos, somada à sua estética totalmente sintetizada e alguns traços punk semelhantes à franquia "Mad Max", "Mandy" acaba se tornando a síntese da homenagem oitentista que vem sido construída na mídia popular mundial ao longo da última metade dessa década. No entanto, o longa não cede muito ao status de caricatura, como 90% dos diretores contemporâneos fariam com esse tipo de material.
   Esses momentos em que o filme cede ao caricato são justamente aqueles em que faltou uma dose de realismo para compensar a suspensão de descrença que o fator fantasia propõe à história. Enquanto a jornada do herói de Red é muito bem executada, com motivações de ambos os lados sendo evidenciadas desde o início e todas as mortes fazerem sentido, sentimos falta de um fio condutor que liga todos esses pequenos vilões. Em momento nenhum nos é apresentado a um elemento que explicite a razão de Red saber exatamente onde esses estarão para que ele possa matá-los.
   Por outro lado, em termos técnicos, o filme sucede ao que propõe: a fotografia incandescente e o design de som distorcido faz jus à temática enquanto que a direção de arte ajuda a localizarmos no noroeste pacífico, assim como colabora pra compreensão do espectador as intenções e da sociedade de Jeremiah e ela em si. A trilha sonora sintética também não fica atrás e a montagem é incrivelmente assertiva, mostrando novamente que Cosmatos tem visões que se concretizam de uma maneira completamente certeira raramente vista entre grandes realizadores contemporâneos.
   É quase impossível dizer se as inserções animadas puramente psicodélicas estão bem encaixadas no enredo por serem constituídas de mera abstração dos "sonhos" de Red que, apesar de serem dignas de contemplação, podem vir a ser desnecessárias. Ainda assim, ela colabora para a temática contracultural do filme que contraditoriamente faz justamente o que aparece nas entrelinhas do discurso de Reagan, compondo, assim, a grande sacada de Cosmato em retratar uma violência tão gratuita e, ainda assim, tão razoável. Com isso, ela fecha com chave de outro a exploração de um universo cinematográfico que, apesar de não ser original, consegue ser incrivelmente rico por flertar com o mundo real.
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   "Mandy" pode não ser o melhor filme do ano, mas é com certeza uma das obras audiovisuais mais inventivas e compromissadas de 2018. O 1º ato é bem sucedido em apresentar a cosmologia do longa e preparar terreno para uma das tramas mais alucinantes do gênero, assim como os outros dois atos exploram maravilhosamente o universo construído ao redor. A mise-en-scène é soberba e as referências narrativas são evidentes. O que torna o filme razoavelmente desvirtuoso é justamente a ausência de um elemento que una todas as virtudes citadas. 9/10.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Let The Sunshine In

Let The Sunshine In

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 Se desprendendo de todos os seus dogmas cinematográficos, Claire Denis dirige, em 2018, seu filme com maior carga dramática. Enquanto acompanha-se a busca da personagem de Juliette Binoche por um verdadeiro amor, a realizadora também convida o espectador a se imergir em um universo de incoerência presente nas falas dos personagens e nas situações onde se encontram.
 Tais incoerênncias se estabelecem a partir de diálogos onde um dos personagens surpreende a protagonista, incluindo ela mesma. Ainda que isso aconteça repetidas vezes, devido à estética reconfortante e harmoniosa da fotografia de Agnés Godard, esse recurso nunca acaba se tornando necessariamente repetitivo.
 Sendo o auge desse artifício um momento de histeria da protagonista Isabelle em um bosque após se cansar do pedantismo e do falso espiritualismo de um coadjuvante, tal ação acaba evidenciando que a protagonista ora está completamente imersa naquele universo, ora é usada para estabelecer uma ponte entre o mesmo e o público.
 Além dela, outros personagens também têm essa função, como um barman numa das primeiras cenas do longa (esta que, ao ser revisitada, acaba revelando uma das mise-en-scènes mais irretocáveis do ano), ou o personagem de Gerard Depardieu, que só aparece no 3º ato como um refúgio após a turbulenta jornada de Isabelle. No entanto, a participação de Depardieu apenas serve como uma retomada de tudo o que acontecera até ali, onde, infelizmente, Denis subestima seu público, buscando explicar (pretextualmente para Isabelle) a razão de tantos erros cometidos. Tal defeito é tão evidente que acaba extrapolando os limites visuais do próprio longa, se extendendo durante os créditos.
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 Fundindo de uma maneira tão equilibrada o absurdo ao cotidiano padrão para um drama, nunca pendendo pras tendências que Lanthimos e Noé estabeleceram justamente com elementos cômicos do resto da filmografia de Denis, "Let The Sunshine In" realiza algo tão raramente visto no cinema contemporâneo: unir o comforto de uma estética limpa ao desconforto da humanidade ali estabelecida, atingindo seu apogeu, além da cena do bar, na cena da galeria de arte, dando destaque ao simbólico painel dos céus diários.
 Mesmo que pareça que queira inovar, Claire Denis apenas retoma os melhores elementos de sua filmografia em um romance dramático não necessariamente profundo, mas verdadeiro, ainda que imerso num absurdo sutil afogado em pequenas incoerências. 9.5/10

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Bird Box

Bird Box

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   Adaptado de um romance homônimo de Josh Malerman, o longa foca em Malorie, uma mulher que deve ir atrás, junto de seus dois filhos, de uma comunidade segura de criaturas que induzem pessoas sãs a se matarem. Dirigido pela talentosa Susanne Bier e estrelado por Sandra Bullock e Trevante Rhodes não é ruim, mas ainda se encontra no largo espectro de mediocridade de boa parte dos filmes da Netflix.
   A trama contada em dois períodos diferentes (um nos meses iniciais desde o início do fenômeno e outro 5 anos depois) possui uma boa montagem, apesar da mesma sugerir o desfecho do primeiro período e haver algumas passagens vazias na virada do 2º pro 3º atos. Ainda assim, confusão é evitada graças à imensa diferença dos cenários explorados nos períodos.
   Enquanto o primeiro período visa mostrar a luta do grupo de sobreviventes liderados por Douglas, vivido por um desponderado John Malkovich, Tom (Rhodes) e Malorie (Bullock), o segundo foca justamente na busca por um refúgio melhor por Malorie e seus filhos. O tom ditado é semelhante nas duas linhas de tempo, sempre prevalecendo um suspense exercido pela privação da visão, mantendo certa constância no ritmo do filme mas que nunca cai totalmente ao tédio.
   O roteiro num geral também colabora para a mediocridade do longa. Com decisões das mais insesatas que são tomadas pelos personagens mais sábios a fim de renovar a carga dramática (que, inclusive, distoa completamente do tom do longa) que se esvai com o início do 3º ato e o fato de dois personagens têm seus arcos interrompidos pois simplesmente deixam de aparecer na história descompensam toda a tensão criada de forma magnífica.
   Essa tensão, criada em cenas como a do carro rumo ao supermercado e a da corda na margem do rio, evidencia certa autoria por parte de Bier, o que também nos ajuda a imaginar a que nível "Fim dos Tempos" de Shyamalan poderia ter chegado caso não escondesse até o fim para revelar o motivo dos suicídios coletivos. Por outro lado, a trilha sonora e a montagem de som evoca uma familiaridade no gênero que gera clichês dos quais poderiam muito bem ter sido facilmente evitados.
   No entanto, as boas atuações de Bullock, que aqui novamente explora de forma soberba a maternidade tão presente em sua carreira, e John Malkovich, que consegue encontrar certo equilíbrio justamente em um personagem desequilibrado para não cair em certo exagero, fazem com que tais erros narrativos e técnicos passam despercebidos para alguns. Trevante Rhodes também merece destaque ao interpretar um personagem que se encontra em um escopo oposto ao Black de "Moonlight".
   A direção de arte do renomado Bryan Lane é certeira ao retratar um dos cenários distópicos mais sombrios possíveis, predominado pela autodestruição da humanidade de forma crua, sem qualquer ato bélico específico. Devem-se elogios à fria fotografia de Salvatore Totino colabora igualmente para essa retratação não necessariamente mórbida do futuro, mas naturalmente desconcertante, encontrado em cenas como a das correntezas turbulentas do rio, antitético ao silêncio assustador das cidades.
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   Sendo uma obra que imediatamente nos remete a "Ensaio sobre a Cegueira" e "Fim dos Tempos", pode-se dizer que "Bird Box" herda os melhores elementos dos dois longas, mas muitas vezes acabam sendo desperdiçadas no suspense devido à escolha de deixá-los a mercê do imaginário do público. Definitivamente não é um filme ruim, mas ainda falta muito para ser recomendável. 6.5/10

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Tungstênio - os perigos da abstenção da liberdade criativa

Tungstênio - os perigos da abstenção da liberdade criativa

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 Baseado na HQ homônima do Marcelo Quintanilla, a trama sobre um militar aposentado, junto com seu colega mais jovem e um policial, que tentam parar um crime ambiental que ocorre na orla de Salvador apresenta uma ótima premissa, mas acaba sendo apenas a transcrição de um quadrinho que por si só não apresenta uma história tão surpreendente quanto esperado.
 Com montagem e diálogos (artificiais para um longa-metragem) idênticos aos da obra de Quintanilla, o filme não demonstra nenhuma liberdade criativa em seus três atos, incluindo congelamentos de quadros nas cenas mais ágeis para entrar uma irritante e desnecessária narração em off que perpetua além destes momentos, uma vez que a mise-en-scène nunca é o suficiente para desenvolver os arcos dos protagonistas.
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 As cenas de ação, sempre acompanhadas com um ágil berimbau não diegético ao fundo, são justamente o que salvam o filme de um completo desastre. Apesar de suas constantes interrupções para um plano que faz referência a uma memória de um dos protagonistas (que acabam sendo repetidas inúmeras vezes ao longo do segundo ato), elas são muito bem dirigidas, compensando parte do baixíssimo desenvlvimento de personagens.
 Por outro lado, a introdução dos mesmos é bem feita devido às atuações, principalmente, de José Dumont e Samira Carvalho. Mesmo sendo estes personagens cujo público não uma ciência quase nula de seu passado, seus gestuais e suas expressões faciais sugerem em quais contextos eles estão inseridos desde um primeiro momento.
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 Além de não mostrar nada de novo em relação a obra cujo filme foi uma adaptação, "Tungstênio" evidencia os perigos da abstenção de liberdade criativa ao adaptar pro cinema um formato bem mas dinâmico como uma HQ. 4/10

domingo, 11 de novembro de 2018

You Were Never Really Here - a maturidade compulsória diante de uma tragédia

You Were Never Really Here - a maturidade compulsória diante de uma tragédia

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   Dirigido pela sistemática Linne Ramsay e estrelado por Joaquin Phoenix, fazendo aqui sua melhor performance desde "O Mestre", "You Were Never Really Here" conta a história do matador de alguel Joe, que recupera menores de idade sequestradas e vê perder tudo o que tem durante o resgate da filha de um senador.
   Situado em um ambiente onde a lei vigente parece ser a de que os fins justificam os meios, somado com os traumas que suas profissões passadas e a atual vieram trazendo, Joe se tornou um indivíduo frio. No entanto, a presença de sua mãe e de seus "gerentes" estão lá para atuar como suporte para ele, uma vez que sua humanidade ainda não foi esgotada, o que também pode ser dito sobre sua sanidade.
   Flertando com Klimov, Ramsay propõe a entrada do espectador à mente de Joe com a interferência nos sentidos. A edição de som e uma trilha sonora propositalmente cacofônica sucedem nessa aposta com cenas, especialmente as emocionalmente dantescas cenas do lago e do espelho do motel. Assim como a direção de fotografia de Thomas Townend conseguiu fazer um bom trabalho com a alteração de planos e iluminação no momento em que Joe tem uma epifania na transição do 2º para o 3º atos.
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   A constante contemplação do suicídio do protagonista, à primeira vista, parece ser apenas mais um dos hábitos estranhos do mesmo decorrentes dos traumas sofridos na infância e no exército. Todavia, quando conhecemos a peculiar relação entre Joe e sua mãe, nota-se que isso faz parte de seu senso de humor, o que só se modifica com uma tragédia.
   E a partir dessa tragédia, o matador, sendo previsivelmente imprevisível, não age diferentemente de como as demais pessoas agiriam. Enquanto trata os causadores dessa tragédia com uma razoável misericórdia, ele aceita quase que repentinamente o que acabara de presenciar. Agora, sem mais nada a perder, Joe surpreendentemente se torna mais objetivo com suas ações e não leva suas tarefas para o lado pessoal.
   Desabando ao ver que seu trabalho já havia sido concluído por outro, o protagonista vê que nem mesmo a última coisa que lhe definia. Mesmo podendo ter acabado nesse momento de angústia extrema e perda de identidade que resume todo o filme, um estudo de personagem sobre um indivíduo que passa por uma tragédia e a partir dela se vê na obrigação de utilizar a sanidade que lhe resta para conseguir amadurecer, o longa se extende por mais 10 minutos sem nenhuma importância no enredo, inclusive arriscando tudo o que foi construído até ali com uma cena produzida com a mesma mentalidade de alienação da filmografia do Lanthimos.
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   Desde o começo deixando clara as inspirações para o roteiro, indo de Bogdanovich a Kubrick, sempre com uma ênfase maior em "Taxi Driver", Ramsay repete a meticulosa jornada por uma mente perturbada tão comum em seus trabalhos, mas agora com um universo menos realista. Com dois atos impecáveis e um terceiro extremamente ousado, o longa não explora todo o seu potencial: os últimos 10 minutos não são somente desnecessários, mas também poderiam ser facilmente substituídos por algo mais crível que de fato amarrasse o arco de um excelente protagonista com seu devido respeito. 9/10

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Infiltrado no Klan - Spike Lee em sua forma mais bruta

Infiltrado no Klan e seus flertes com o mundo atual

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   Nesses últimos anos, Spike Lee muitas vezes ora desenvolve magistralmente apenas a misè-en-scène, como em "Pass Over", ora a cosmologia de seus filmes, como em "Chi-Raq". Mas não se pode negar que ele é um mestre das narrativas e sempre vem com uma premissa completamente original (tirando raras exceções como o remake de "Oldboy" que não acrescentou nada ao original coreano).
   No entanto, seu filme mais recente, "BlacKkKlansman", consegue equilibrar as duas coisas muito bem, podendo ser comparado aos seus filmes mais memoráveis como "Malcolm X" e "Do The Right Thing".
   Baseado em uma história verídica, o longa retrata a dura missão de Ron Stallworth, um jovem policial negro, em desmascarar a célula local do Klu Klux Klan ao mesmo tempo em que tenta prevenir que a polícia tenha motivos para interromper as atividades da União de Estudantes Negros local.
   Instalado em um universo cheio de contrastes (seja pela paleta de cores variadas que dista do tema sombrio da narrativa, ou então pelo uso intercalado de canções e discursos que os dois grupos antagônicos ouvem a fim de reforçar suas convicções), o filme consegue equilibrar muito bem seus núcleos sem que o espectador se perca graças à edição que também deixa espaço para doses generosas de bom humor entre os policiais, principalmente no início dos dois últimos atos.
   São altas também as taxas de angústia e medo em função de uma abordagem corajosa de problemas sociais que o filme evoca, uma das marcas registradas do cineasta. O longa se abre com um monólogo do  personagem do Alec Baldwin que convoca os protestantes brancos para uma perseguição aos negros pois estes os prejudicam. Mais a frente, esse sentimento de opressão evoluirá à paranoia e desespero antes do fim do primeiro ato e se perpetuará alcançado seu clímax na última cena com o apoio de outro artifício de Lee: o Double Dolly Shot.
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    Há chances de no fim da exibição o espectador sentir que arcos de alguns personagens não são dos mais críveis. Além do romance entre Ron e Patricia, que é comprometido por preconceitos de ambos sobre suas ocupações, tanto os policiais abertamente racistas quanto os membros absurdamente ignorantes do Klu Klux Klan parecem ser meros frutos caricatos da liberdade criativa que Lee tomou na hora de adaptar o livro escrito pelo verdadeiro Stallworth.
   Entretanto, na que eu elegi como sendo a cena mais icônica do filme, durante a iniciação de Flip Zimmerman seguida da exibição de "Nascimento de Uma Nação" do D. W. Griffiths, um idoso narra ao UEN a história de seu amigo de infância Jesse que foi morto e castrado por uma acusação mal embasada de um júri supremacista. Acontece que uma parte do testemunho desse idoso retrata exatamente o que está acontecendo naquele exato momento na sede da "Organização", como os membros do KKK se autodenominam, sendo que na ocasião seu líder, David Duke, suplica aos seguidores para que priorizem a América acima de tudo, além de trazer um caráter dúbio à expressão “pessoas de bem”.
   Fica clara então a intenção do realizador em apontar um retrocesso da sociedade atual aos tempos de barbárie. Ainda assim, ele toma uma atitude muito pessoal em explicitar ainda mais sua mensagem nos créditos finais, mas cumpre o que propõe e acaba que não compromete muita a experiência, ainda mais se comparado com a recompensa do "jive" que o espectador recebe um pouco antes.
   Conciliando de uma forma extraordinária um drama social com boas doses de comédia em um ambiente essencialmente urbano, Spike Lee se apresenta mais uma vez  em sua forma mais pura, mas se perde quando abandona a sutileza da mensagem. 9.7/10

sábado, 6 de outubro de 2018

Eighth Grade - O processo de adaptação da geração X com a adolescência contemporânea

Eighth Grade

O processo de adaptação da geração X com a adolescência contemporânea

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   O longa de estreia do comediante Bo Burnham conta a vida da jovem Kayla, uma adolescente com um alto grau de ansiedade que eventualmente progride a crises de pânico vendendo nas redes sociais como o completo oposto disso. Agora com um pé no ensino médio, ela tenta superar seu passado de garota antissocial ao tentar seguir as próprias dicas que ela recomenda em seus vídeos de YouTube.
   Sendo um coming of age produzido pela queridinha A24, era de se esperar algo mediocremente forçado embora exageradamente pesado como “The Spectacular Now”. Entretanto, para a minha surpresa, “Eighth Grade” cumpre o que propõe como um ensaio sobre as dificuldades que o universo virtual impõe sobre essa geração mais nova. Ainda assim, o diretor opta por não evidenciar isso de uma maneira completa. A sequência da festa na piscina, por exemplo, onde Kayla enxerga seus colegas quase como aberrações possui um conceito inteligente, mas sua execução não explora todas as possibilidades. Melhor seria, talvez, se adicionado a isso, mostrasse a figura de Gabe como um refúgio à protagonista, ao invés de mostrá-lo somente como mais um esquisitão.
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   Por outro lado, essa busca pelo mais simples funciona em cenas onde Kayla se encontra completamente sozinha. Não são muitas as vezes em que é mostrado o que a protagonista está vendo, mas estas funcionam devido ao cuidado de Bunrham em notar que em tais situações nem Kayla saiba exatamente o que está vendo, seja por medo e confusão ou apenas falta de atenção. Sendo assim visível a intenção de nos colocarmos no lugar dela, o espectador que aceita tal condição logo sente uma imensa empatia, mesmo que não fosse daquela forma quando tinha sua idade devido a esses artifícios. Vale também ressaltar que a trilha sonora mescla estilos de diferentes épocas em busca de atingir total identificação do público.
   Não só retratando com precisão a vida de qualquer adolescente ocidental mediano, o filme também discute sobre temas cujos quais o diretor normalmente aborda em seus stand-ups. Massificação da cultura, narcisismo condicional e a luta dos adultos em encontrarem um meio termo entre a liberdade absoluta e a rigidez insuportável para com os adolescentes aparecem, sobretudo, com uma grande intensidade nas camadas mais profundas do filme.
   Em decorrência disso, ficou simples notar que o universo no qual o filme está inserido tem as crianças no comando. Enquanto isso, os adultos constantemente buscam sua aprovação ao tentar imitar seus gestos (destaque para os dabs desajeitados do diretor) e não questionar suas ações, de modo que nos questionemos se os mesmos já não estão cansados do sistema os colocarem em uma posição superior que contradiz com suas ações.
   O pai de Kayla é de longe o personagem mais inverossímil, mas ao mesmo tempo o que torna mais evidente essa condição do universo do filme. Ao dizer sim a tudo para a filha, fica a impressão que sua figura é desnecessária ao ponto de ser útil somente na logística da protagonista e gerar no espectador a tão presente vergonha alheia, o que fica embasado pelo diálogo no qual, apesar de ter medo de criar Kayla sozinho, não precisou fazer nada pois ela conseguiu se formar como pessoa sem precisar de ajuda.
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   “Eighth Grade” superou minhas expectativas em função de sua produção, mas alguns elementos da mise-en-scène mereciam ser melhor lapidados, como a iluminação que ora é muito limpa ora trazendo uma atmosfera de insalubridade, nunca arranjando um meio termo. Todavia, cumpre o que propõe e ainda deixa a reflexão sobre como os hábitos dessa geração educada pelas redes sociais possam também influenciar o modo de vida dos adultos e as situações que eles são obrigados a passar para tentar se enquadrar entre os adolescentes, quem sabe mais do que eles próprios. 9/10