sexta-feira, 19 de junho de 2020

Piedade - o desespero do artista em querer se adequar ao momento

Piedade - o desespero do artista em querer se adequar ao momento

Mostra on-line de filmes inéditos no Espaço Itaú de Cinema ...
   A súbita redução da, já não tão expressiva, receita do cinema nacional como efeito do isolamento social e da extinção de financiamento público, o período áureo do cinema de retomada chega a um possível fim em 2020. O fim dessa era sente falta de obras marcantes recentes de alguns de seus expoentes e Cláudio Assis entra pra essa turma, mesmo lançando "Piedade".
   O idealizador de "Amarelo Manga" e "Baixio das Bestas" volta, então, com um drama familiar semiautobiográfico com subtexto crítico social. Porém, seu desespero em articular um clássico instantâneo quanto ao contexto apropriado à crise política contemporânea distorce as próprias motivações e no fim o único motivo que apresenta uma regularidade à cosmologia é o mangue beat, que ele já dominava como ferramenta desde o início da carreira.
 Crítica | Piedade – Sexo, afeto e ativismo pautam ótimo filme com ...
   A impressão que dá é que ele tá querendo tomar de volta do KMF o posto de pernambucano mais woke do cinema nacional. Fica muito claro como, originalmente, a história a ser contada era da reaparição de um filho perdido há décadas, mas os contrastes entre os 3 ambientes onde a história se passa deram brecha à crítica às políticas de apaziguamento de empresas estatais com as comunidades ambientalmente afetadas por suas atividades. Aos poucos cada vez temáticas constantemente discutidas nos dias de hoje, como invasão de privacidade e falta de afeto em virtude à masculinidade, são introduzidas mas nunca propriamente desenvolvidas, apenas lá na tentativa de construir a fórmula de um clássico nacional contemporâneo.
   Contrastes como o dos cenários são replicados aleatoriamente a outros elementos do filme, emulando motivos pra disfarçar a fragilidade coesiva de núcleos paralelos à trama principal, como a estética camp assumida pelo grupo de ativismo que o personagem do filho do Cauã Reymond participa se opondo à antissepsia do quarto de hotel do personagem do Matheus Nachtergaele. Se nas cenas iniciais o intensidade dramática no vídeo do grupo surfando no mar de Piedade implica grande importância atribuída a ele para a resolução do conflito condutor, o mesmo revela-se rapidamente como artifício raso pra reiteração desnecessária do que é o que o Assis quer criticar.
Festival de Brasília 2019: Matheus Nachtergaele considera Piedade ...
   A boa decupagem, no entanto, compensa a cosmologia mal desenvolvida. Até porque sem a calibração da mise-en-scène não só os contrastes arbitrários como também os essenciais se mostrariam artificiais ao realismo que a comunidade pesqueira retrata. Também é possível identificar um quê de Tavinho Teixeira com o realismo fantástico dos sonhos primitivos do neto da personagem da Fernanda Montenegro e com as cabines de casal do cinema Mercy e o filme consegue se adequar bem a essa proposta à medida que diferenciam os coadjuvantes dos figurantes.
   Apesar de bem encenado e fotografado, Cláudio Assis não consegue manter regularidade na obra por desespero de tentar marcar o espectador com situações prontas e atribuir um caráter moralmente dúbio a cada um dos personagens, sendo que a conclusão não mexe na moral deles, só fica confuso e distante do que o filme buscou imageticamente esse tempo todo, mesmo com metáforas bem planejadas, como o personagem do Mateus Nachtergaele dando cabeçada na bunda do Cauã Reymond pra mostrar ele como a personificação dos tubarões. No fim é só um medley anti coesivo de esquetes estilo Black Mirror focando numa mesma família.

terça-feira, 9 de junho de 2020

"Aruanda" e "Ilha das Flores": um Brasil de muitas indústrias

"Aruanda" e "Ilha das Flores": um Brasil de muitas indústrias

Aruanda - 1960 | FilmowVale a pena ver (e rever): Ilha das Flores | Coruja Bióloga

   Linduarte Noronha, enquanto precursor do Cinema Novo, construiu seu legado em cima do curta-documentário "Aruanda". A saga da mulheres do Quilombo Olhos d'Água, que sobrevivem da manufatura de potes de argila, não só influenciou documentaristas de sua geração, como o Glauber e o Coutinho, mas também cineastas posteriores.
   Tematicamente, "Aruanda" se assemelha ao "Ilha das Flores" do Jorge Furtado em retratar o caminho de uma mercadoria de grande importância para determinados contextos. Ainda assim, enquanto a obra de Noronha foca na base do capital com a manufatura artesanal de baixo valor agregado, preocupando-se no combate à história única de toda uma comunidade que vive sem o privilégio de ser salvaguardado pelas instituições estatais, nunca reduzindo os quilombolas à miséria, o curta-documentário gaúcho acompanha o capital por todo o ciclo do mercado, nunca se aprofundando em um estágio específico para desconstruir certos estereótipos, mas dando uma noção ampla das falhas do capitalismo.
   Apesar de ser igualmente rico, em questão de linguagem, analisarem-nos como obras individuais, encará-los como um sendo a continuação do outro oferece ao espectador o aprofundamento da perspectiva fisiocrática quase que intuitiva do Brasil como um país de muitas indústrias. As diferenças de ritmo e decupagem realizam o recorte histórico-social para que o contraste entre as duas realidades se destaque. As oleiras paraibanas trabalham sem pressa, com capricho, se opondo à produção em massa dos perfumes da revendedora. Não tinha como ser diferente.
   Os dois curta metragens mais importantes do cinema nacional se completam. Representantes do gênero que os cineastas brasileiros mais dominam, tomam como protagonista o próprio narrador. Pomposo e satírico, cada um à sua maneira, contam aquelas histórias sem nunca dizer mais do que necessário.
   Se logo na introdução se mostram como exercícios de montagem ímpares, o casamento proporcionalmente calibrado da imposição das vozes emprestadas em menor ou maior presença diante das respectivas mise-en-scènes (minimalista em "Aruanda" e carregada em "Ilha das Flores") justificam o porquê apontarem-nos como aulas de texto, amarrando, enfim, o último e principal elo entre a invisível ligação entre ambos os documentários.
   A feira de Santa Luzia, é o único lugar onde se tem olhos para os quilombolas, onde não estão latentes ao Estado pois é onde geram riqueza; essa liberdade que experimentam a cada viagem de 1 dia que fazem para o Sabugi que a mesma que o narrador da "Ilha das Flores" aponta como a "que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda".