domingo, 2 de fevereiro de 2020

Melhores filmes de 2019

Melhores filmes de 2019

   Talvez seja apenas a constante evolução do cinema, o fato de me distanciar ao circuito comercial que lança, em sua maioria, obras medianas ou apenas efeito de recência, mas a impressão que sempre fica quando redijo uma dessas listas é que a cada ano a qualidade dos melhores filmes lançados no mesmo aumentam exponencialmente e dessa vez não foi diferente.
   Apesar de sempre haver o mesmo problema de não conseguir ter acesso a todos os longas aos quais me interessei ainda que vá atrás de torrents raros e vazamentos de screeners, como foi o caso de "Honey Boy", "Richard Jewell" do Clint, "A Hidden Life" do Malick, "The Halt" do Lav Diaz, "To the Ends of the Earth" do Kurosawa e "An Elephant Sitting Still" do Hu Bo, que provavelmente chegariam a aparecer nessa lista, as obras com que tive contato são, em boa parte dos casos, irretocáveis.

Menções Honrosas

Vingadores: Ultimato

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   Minha crítica acima.

Atlantics

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   Dado o pouco contato que temos com o cinema africano muitas vezes sua contribuição à indústria é vista como insignificante comparada à produção ocidental (quando muito, são feitas análises, nenhuma delas tão profundas quanto merecem, sobre Nollywood, realizadores do cinema egípcio da década de 40, como Mizrahi e Anwar Wagdi ou figuras exclusivamente polêmicas como Rautenbach). Assim, o realismo fantástico na estreia da iniciante em ficção Mati Diop, um drama social com abordagem agressiva equivalente a "Bacurau" e "Parasita" mas que curiosamente se distoa de uma fácil temática anti-imperialista (não que o sul-coreano se aproxime disso) para se aprofundar às mazelas do capitalismo em uma esfera mais local, que muitas vezes é subestimada pela mídia internacional. É a sensibilidade da diretora em equilibrar uma trama central genérica (mais uma história de amor proibido) que se salva pela autoria e subjetividade com o aspecto fantástico dos espíritos perdidos no oceano que traz a tona a riqueza do desenvolvimento de um futuro de fácil familiarização justamente por ser tão distópico.

Doctor Sleep

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   Qualquer tuotista-baziniano reconhece o quão ridícula é a discussão do King vs. Kubrick sobre "O Iluminado". Ao mesmo tempo, esse longa parece ter agradado gregos e troianos, o que é bem fácil de entender, já que Mike Flanagan é um iconófilo tanto do autor quanto do cineasta. A maneira com que ele transita entre esses dois universos diferentes com tamanha suavidade é admirável. Ao mesmo tempo em que mostra a obscuridade do vício de Torrance e sua lenta recuperação paralela a um calmo desenvolvimento da trama da seita de Rose The Hat, em nenhum momento (ainda mais no ato final) ele busca apagar a existência do clássico do Kubrick. Pelo contrário: com uma cuidadosa decupagem com a qual obviamente busca-se homenagear o cineasta, a obra anterior é frequentemente referida, mas sempre remetendo a marcas autorais facilmente identificáveis na filmografia de Flanagan, de modo que se acrescente muito, inclusive nas cenas no próprio Overlook.

Domino

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   O maneirismo vulgar do De Palma é uma marca registrada inegualável e logo nos primeiros 15 minutos do longa vemos o potencial que a obra tinha de ser o mais maneirista de sua carreira. Porém, os ocasionais problemas com orçamento e continuidade acabam prejudicando todo o projeto, apesar de não impedir que se filmem algumas sacadas inteligentíssimas, como o plano contraplano mútuo com go pros, fazendo desse excerto uma versão melhorada daquela cena do pau de selfie em " The 15:17 to Paris" do Clint.

 Top 20

20. The Beach Bum

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   É quase que instantâneo o reconhecimento desse filme como autobiográfico. Desde o início da carreira de Korine é possível perceber suas motivações iconoclastas alternadas com um ótimo uso da estética camp. Aqui, no entanto,as duas técnicas se aglutinam em algo sem precedentes. Ainda que meu favorito do diretor siga sendo "Spring Breakers", seu último trabalho realiza façanhas das quais a obra anteriormente citada não chegou nem perto de alcançar, como o auto-deboche da classe representada pelo arquétipo do protagonista (aqui, no caso, a classe artística): Moondog enquanto essa figura quixotesca surrealmente carismática que chega a liderar sua própria trupe de sem-tetos enquanto processo criativo para a produção de seus poemas escatológicos sempre se mostra ciente do alcance de sua obra e dos compromissos que sua carreira rege, mas sempre prioriza suas próprias vontades (um paralelo com certas figuras do nosso universo que a cosmologia camp de Korine poderia sugerir é a dos trapstars contemporâneos), como se optando a uma alienação forçada, como vista na cena do personagem do Martin Lawrence mergulhando com tubarões achando que são golfinhos. Perpetua-se essa egoísta jornada sem rumo até cumprir com determinado acordo. A partir de então, o teto iconoclasta estabelecido em "Spring Breakers" é finalmente rompido com uma das sequências mais iconoclastas da década, justamente a que mais remete À própria vida e obra do diretor.

19. Hotel Mundial

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   Jarleo Barbosa entrega uma das melhores direções do ano e co-roteiriza com Pedro Novaes (quem dirigiu o mediano "Alaska") o melhor filme goiano do ano com uma espontaneidade assombrosa para um estreante em longas. Desde a conclusão do argumento primário, em 2011, o projeto claramente não saiu de sua cabeça em nenhum momento, dando a ele oportunidades o bastante para que consiga explorar todas as nuances possíveis das personalidades dos personagens. Aproximando-se do mais sangsooniano que um filme nacional jamais conseguiu, Jarleo nos apresenta o casal Felipe/Antônio e Verônica/Sofía, que se vêem "presos por opção" em um hotel no centro de Buenos Aires e agora descobrem juntos os limites e as imposições de um relacionamento à distância, mas logo fica clara que essa está longe de ser a verdadeira intenção do diretor. No caso, uma das inúmeras nuances do projeto se destacam das demais: o peso dos sons da cidade na mudança de comportamento das pessoas.
   As marteladas arritmadas da suposta construção nas proximidades não são mera trivialidade (senão não se estenderiam até a cena final), assim como a paleta monocromática do Fernando Cirillo e os diálogos eventualmente incoerentes e poucos coesos a uma linha central (infelizmente é um sacrifício que acaba comprometendo boa parte da mise-en-scène). Tudo isso nos leva a um sagaz labirinto sem saída sobre as motivações tanto dos personagens quanto de quem está por trás das câmeras, uma vez que essas escolhas são apenas estímulos (ou até mesmo distrações) para que o som ambiente se torne o novo silêncio numa tentativa de levar a platéia ao estado mental dos personagens. O brilhantismo de fazer isso de modo que se desconstrua todas as convenções regulares de qualquer método que o diretor pareça se apropriar é, reiterando, apenas comparável a Sangsoo.

18. Homecoming: A film by Beyoncé

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   Era de obras como essa que Bresson previa ser realizada quando, lá em 83, afirmou que chegaria a um ponto em que o cinema não permaneceria apenas em filmes, em um auto-denominado "teatro filmado" tão criticado por seus contemporâneos, como Godard. O exercício que Beyoncé faz aqui, indo além de sua própria performance e seus contextos, é admitir o cinema não como recorte limitado a apenas um tipo de arte (no caso, o audiovisual) mas como linguagem. Ainda que o documentário não fosse realizado, sua apresentação do Coachella já era um evento que traria para o cinema uma autorresignificação revolucionária dadas as razões ditas acima. Ainda por cima, a montagem precisa nos oferece algumas transições que parecem ser mero virtuosismo, mas quase que instantaneamente deixam claras suas intenções de coesão em relação às letras das músicas, caracterizando uma vaidade que aqui funciona otimamente comparada a outras obras do gênero que tentaram uma mesma entrega de espetacularização, como "Democracia em Vertigem", justamente pela artista confessar a mesma ao invés de forçar austeridade imagética a fim de priorizar o discurso.

17. Asako I & II

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   A excessiva prolongação de momentos de desconforto em relação à própria Asako é, ao mesmo tempo, o maior erro e o maior acerto desse filme. A ressalva vem pela necessidade de construir uma hipeŕbole a partir do roteiro sendo que a câmera captura com maestria ao longo de todas as 2 horas o que precisa ser dito sobre a cosmologia sugerida em que há uma anti-dissonância cerebral: se Asako tiver um pensamento egoísta ela com certeza irá pô-lo em prática. Não importa o quanto ela pense que superou o desaparecimento de Baku nem o quanto o diretor proponha o início de um arco de redenção para a personagem, decisões erradas serão feitas cada vez mais frequentemente. O fato de nem mesmo fenômenos naturais que vão de um único raio de sol perseguindo a atriz até o terremoto mais devastador da história do Japão são capazes de parar seu autoboicote justificam a adoção do desconforto como ferramenta narrativa desde que não haja hipérboles na abordagem, o que, eventualmente, acaba não sendo caso.

16. Dor e Glória

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    Teoricamente, os dois substantivos abstratos que compõem o título devem se complementar, partindo da lógica que toda glória é precedida pela dor, mas logo nos primeiros minutos do filme fica claro que o que será apresentado é um jogo de antíteses. Talvez seja por isso que o título dialoga tão bem com o contraste entre cansaço que o rosto de Banderas emana e a paleta de cores tão diversa que colore todo ambiente em que está. Obviamente a cena de Mallo testemunhando uma briga de facas enquanto compra heroína é a grande exceção, mas é justo quando o brilhantismo de Almodóvar mais se aflora por transmitir, a partir da reação de Salvador ao ocorrido, toda a dor que sente.
   Assim, a glória é quase que totalmente ausente e, mesmo quando surge, é melancólica o suficiente para logo retomar à coléra da alma que se torna o modo default de Salvador: as nostálgicas cenas de sua infância multifásica, desde sua brincadeira com as barras de sabão compassada pelo canto das lavadeiras (compreensível ter uma memória tão vívida desse momento quando as vozes em questão são de Rosalía e Penélope Cruz) até a ameaça de uma desconstrução cultural pelos professores jesuítas de seu internato, o impactam quando cresce pois decide evitar criar memórias significativas para não sofrer ainda mais com seu passado.
   Curiosamente, tal terceirização de sua glória com o personagem de Asier Etxeandia culmina no ponto do alto do longa, a interpretação do monólogo "Vício" com o homenageado na plateia. Assim, o fascínio que Almodóvar tem pelos seus atores, que nesses mais de 40 anos de produções foi muito explícito, atinge um novo patamar por se tratar de ser sua vida na tela, de modo que essa semi autobiografia agregue um peso considerável ao legado que Almodóvar vem construindo.


15. Bacurau

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   Minha crítica acima.

14. O Irlandês

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   Tuoto inicia sua crítica a este filme denunciando o fim do ciclo de um cinema do qual Scorcese e seu elenco foram principais expoentes mas que já não existe mais. A anunciação da famigerada morte do cinema que os aprendizes do Tuoto tanto discutiram nos últimos anos finalmente se concretiza em vários setores, cada um com um exponte reproduzindo uma grande ode aos mesmos: Godard com "Imagem e Palavra", Spielberg com "Jogador Nº 1" e Scorcese com "O Irlandês". Tal resignação é uma rima clara aos próprios moldes do gênero de filme de máfia em que o público já começa a sessão ciente das mortes de vários dos personagens devido à inevitável natureza violenta daquela cosmologia que se repete em todos os filmes. Inicia-se uma nova era na sétima arte em que o autorismo volta a ser eclipsado por um monopólio, dessa vez a Disney. Ainda que o filme não se limite a esse genial manifesto autoconsciente, inclusive estabelecendo um dos melhores 3º atos de toda a história do cinema, tal visão enriquece ainda mais essa odisseia rumo ao último suspiro de um cavaleiro solitário como Scorcese é em relação ao gênero e o personagem de De Niro é em relação à própria máfia.

13. Ad Astra

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   Sendo esse o meu 1º Gray da década que eu via, esperava algo menos afetuoso, talvez próximo ao "Little Odessa". No entanto, o que é apresentado, se comparado aos chamados "clássicos contemporâneos" do gênero, como "Interestelar", reforça a pequenez dos mesmos, uma vez que a odisseia de Roy McBride a fim de resolver uma série de sobrecargas eletromagnéticas que vêm afetando a humanidade e parecem ter relação direta com o projeto em que seu pai esteve no comando pelas últimas 3 décadas.
   Para isso, é explorado ao máximo o recurso da paleta de cores: na primeira hora do longa o cinza clínico complementado pelo preto absoluto do espaço (inclusive muito presentes no único filme ao qual achei justa uma comparação, "O Primeiro Homem" do Chazelle, apesar da impessoalidade inumana do Armstrong perpetuar até o fim desse outro filme) predomina, reforçando a falta de humanidade do personagem já explicitada pelas narrações em off; em seguida, no segmento em Marte, o comportamento de McBride sofre uma mudança brusca a partir da tentativa de comunicação com seu pai, o que é acompanhado pelo predomínio de tons terrosos (não representa uma renovação em sua personalidade, mas um conflito travado entre o modo de vida impessoal e egoísta que vinha levando e o que ele deveria desconstruir nele mesmo para conseguir seguir adiante com sua jornada).
   Finalmente, o azul de Netuno se torna cada vez mais presente à medida que suas habilidades comunicativas se tornam menos artificiais (curiosamente logo depois de ficar quase 80 dias sem nenhum contato humano). O planeta se torna reflexo da Terra, a "big blue marble" citada no genial, em termos de sequências de ação e uso de narração em off, segmento da Lua, e tudo o que há lá que geraria qualquer sensação profunda ao protagonista caso fosse uma pessoa mais natural. O puro niilismo que se torna sua crise leva à destruição de certos ideais e à resignação pelas circunstâncias e isso acaba se mostrando mais construtiva do que qualquer aprendizado técnico que a missão poderia oferecer. Ainda que as motivações dos personagens para as escolhas mais decisivas nunca aparentam clareza, deteriorando bastante a experiência, o último longa de Gray, e possivelmente o mais emotivo dele, é assertivamente construído.

12. Era Uma Vez em Hollywood

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   Minha crítica acima.

11. Ash is Purest White e Her Smell

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   Apesar de sempre ter ouvido muito bem sobre "Plataforma" e "Um Toque de Pecado", "Ash is Purest White" foi o primeiro do Zhangke que assisti e talvez a falta de costume por uma cosmologia tão complexa quanto a de seus filmes com certeza deixei passar muitos elementos de articulação narrativa e decupagem que, particularmente aqui, são obviamente essenciais para o desenvolvimento da mise-en-scène. Por isso me parece errado o filme não estar em uma posição melhor na lista, mas se estivesse não saberia como argumentar
   Em suma, Qiao e Bin tinham uma história de amor que é posta à prova mas um deles não consegue lidar com a situação. A partir de então, a câmera que costumava representar a inseparabilidade do casal, sendo o plano sequência da cena da emboscada a maior contribuição para essa ideia, se torna cada vez mais alheia à visão de mundo anterior dos dois, principalmente de Qiao, de modo que, eventualmente, não se perceba a passagem do tempo nem quão afetados ambos realmente foram. A alienação logo se mostra um eficaz artifício de condução e acompanha o espectador até o final, quando a encenação é o último resquício de uma cosmologia há muito tempo esquecida em favor da falta de esperança e do caos que o desencantamento proporciona, ainda mais depois de tudo que já foi vivido.
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   Bujalski e Ross Perry são os únicos mumblecorers que nunca pararam de correr atrás da transgressão dos limites criativos de um gênero recente com um potencial ainda muito pouco explorado, apesar de já ter se mostrado bem saturado por alguns "autores". "Support the Girls" do ano passado prova isso e "Her Smell" só reitera. O último do Ross Perry conta a saga de uma cantora pós-punk autodestrutiva e sua incrível habilidade de puxar todos a sua volta para um mesmo fundo do poço.
   O que 80% dos cineastas ocidentais em atividade transformariam em um grande espetáculo supérfluo e virtuosista (pessoalmente, tenho a curiosidade de ver o que o Antonioni faria com esse roteiro), Alex transforma em um forte conto sobre a busca indireta por ajuda e o conflito entre egocentrismo e rejeição à própria imagem. O filme, num todo, deve ter 5 ou 6 cenas, mas isso não serviria de nada se não fosse a abordagem do espaço e da confusão que ele provoca na protagonista: quase todos os ambientes são por si só consideravelmente insalubres, mas as relações interpessoais claramente prejudiciais somadas à desorientação sensorial proposta pelo diretor de fotografia Sean Price Williams, que já tem um histórico de contribuições com os Irmãos Safdie, dando a ele propriedade para explorar tal recurso, ajudam a construir uma percepção afiada sobre os transtornos da artista e a manifestação dos mesmos provocada pelos impulsos e tentações que ela passará. Ainda que o longa não seja baseado em fatos reais, gostaria muito que mais filmes de superação fossem construídos com a mesma competência deste (vale lembrar que anterior a ele já havia sido lançado o bom "A Pé Ele Não Vai Longe", o último do Gus van Sant, que segue os mesmos passos e uma mesma temática).

10. Us

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   O terror é o meu gênero favorito justamente pela subversão da imagem que ele oferece. No entanto, "Us" de Jordan Peele subverte até essa premissa inicial a partir do jogo de coincidências do 1º ato, já avisando tanto ao público quanto à personagem da Lupita Nyong'o, que entrega a melhor interpretação do ano (junto à Vitalina Varela no filme homônimo) justamente pela maneira assertiva de ser ambos o sujeito e o objeto das ações sem que uma das partes se torna estepe da outra (apesar do roteiro nos dizer o contrário), sobre as manifestações ambíguas daquele universo. A sugestão do terror apenas se inicia à medida que as memórias da protagonista se intercalam com tais coincidências, uma sugestão que já antecipa o teor político com a mesma sutileza encontrada em "Get Out" na cena do Chris comprando algodão na farmácia. Essa estratégia se estende a todos os membros da família para, então, seus reflexos estabelecerem contato com um cuidado pouco esperado.
   Cuidado esse que é encontrado na forma em que Peele explora seus símbolos sem uma nolanização do discurso (com exceção de uns 2 momentos que jogaram na nossa cara o que havia sido dito segundos atrás, talvez a minha única grande ressalva). Ele não tem medo da simplicidade dos mesmos: está tudo entregue, não é preciso que ninguém verbalize o significado deles. Já no título a permanência da revelância da máxima "América para os americanos" atualmente é explorado, enquanto que o fim do american way of life em detrimento do Reaganomics é perfeitamente articulado com a contextualização dos socioespacial dos primeiros minutos do longa.
   Diego Quaglia diz que Jordan trata o terror e a crítica social como organismo único em uma notável simbiose e o escárnio pelo excesso é o alimento mais nutritivo para esse organismo: se devemos amar aos outros da mesma forma que amamos a nós mesmos, o caos seria o único caminho a se seguir caso ambas as partes se tornassem uma só? É com perguntas retóricas como essa que o imagético é finalmente subvertido: a princípio, uma canção de protesto apropriada pela classe alheia é usada como trilha sonora acidental de um massacre de uma família com altos privilégios por...eles mesmos, mas aos poucos alcança-se um novo patamar com a narrativa do colonizador tirano se tornando cada vez mais clara (a marcha agora é para o Leste, mas o genocídio segue igualmente atroz). A noite vira dia e o nosso maior inimigo já não é mais nós mesmos mas quem poderíamos ter sido se oportunidades suficientes fossem oferecidas a todos que as aproveitassem. Todas as questões referentes à sociedade (principalmente as raciais), de certa forma, são conciliadas, mas a destruição da mesma realmente é o único meio? Jordan Peele, assim, se torna o maior nome do cinema autoral americano da segunda metade dessa década com um longa que se recusa a responder as próprias perguntas.

9. John Mulaney & The Sack Lunch Bunch

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   O que o Miyasaki conseguiu fazer com "Meu Amigo Totoro" em criar um filme sem nenhum compromisso com o verossímil e a própria estrutura clássica do storytelling em favor da brincadeira de criança sem necessariamente infantilizar a coisa toda é comparável ao que Mulaney faz aqui. Considerando que ele construiu uma carreira em cima de piadas com contextos culturais sempre muito complexos para uma criança, como "Special Victims and Ice-T" e "Bill Clinton: the comeback kid", ninguém esperaria uma homenagem tão sincera aos Mr. Rogers e derivados que passaram pela TV aberta americana e a infância como um todo sem abrir mão do humor e da autoria.
   É uma obra muito delicada de se discutir pois ela acaba remetendo muito à criação que recebemos dos nossos pais e do quanto os produtos da iconização da televisão, muitas vezes, foram mais influentes do que aqueles para que nos tornássemos o que somos. Ainda assim, o recorte histórico não vai além da estrutura dos clássicos da PBS, de modo que a nostalgia pautada abranja espectadores de todas as idades.
   Lógico, para esse efeito se tem a ajuda do uso de diferentes decupagens, cada uma popular para determinada geração: os formalismos dos musicais da MGM para os avós nos segmentos de coro com o The Sack Lunch Bunch; o jogo de cores quentes e jump cuts da Disney das décadas de 80 e 90 para os pais com o segmento do André De Shields; a apropriação de obras que foram mercantilizadas na tentativa de contar uma nova história, característica-mor do YouTube Kids, para as crianças de hoje com os segmentos do David Byrne (pessoalmente os meus favoritos).
   A coesão proposta, ainda por cima, não fica aquém das apresentações. Se por um lado Mulaney se põe em 2º plano (o que, por outro lado, julguei como decisão errada se visto pela perspectiva de ele, teoricamente, ser o apresentador do programa), as transições das perguntas sobre os medos dos membros do The Sack Lunch Bunch são um dos pontos mais altos do show devido à naturalização do tema, há muito tempo não abordada com tamanha sensibilidade  tanto entre realizadores de obras infantis (Jim Henson foi o último de sua espécie) quanto entre humoristas, consolidando, dessa maneira, o melhor especial de comédia da Netflix junto ao "Make Happy" do Bo Burnham.

8. Portrait of a Lady on Fire

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   Célinne Sciamma, a mesma mente por trás de "Tomboy", não mede esforços em, mais uma vez, desenvolver um microcosmo tão aberto ao relativo obsceno, evidência da relevância da erudição para o desenvolvimento da trama. Etimologicamente, "erudição" vem de algo próximo ao ex-rude e Sciamma o tempo todo irá tentar nos desvincularmos à agressividade e ignorância da época retratada. Por mais que haja figuras que apresentem perigo às duas, como a mãe da noiva, vale lembrar que ela se encontra alheia à relação, de modo que as limitações das liberdades daquele relacionamento, uma vez que, desde o começo, a amizade entre Marianne e Héloïse esteve coberta de segredos e omissões, é mais uma das várias partes do convívio das duas
   É como diz Ricardo Gago: "Se o jogo de cartas de 'Barry Lindon' fosse um filme, ele seria 'Retrato de uma Jovem em Chamas'". Ele está falando do uso de silêncio, subtexto e iluminação natural "para transmitir a tensão romântico-sexual" e Kubrick está claramente atrelado a essa epifânia. A valorização absoluta do clássico em uma obra tão estrondosa apesar de seus formalismos é fruto do barroco que aquele microcosmo emana (na verdade, este é, possivelmente, o filme mais barroco de todos os tempos desde "Visage" do Tsai Ming-liang) através de sua direção de fotografia expressiva e montagem cuidadosa na hora de dar às duas protagonistas o mesmo tempo de tela e retratar as duas juntas com a máxima intensidade executável, como se já antecipando a tragédia dos inevitáveis desencontros.
   São em momentos como nos que os fantasmas da separação, personificados por Heloïse em uma vestimenta semelhante à de Eurídice, assolam a pintora  logo após a roda de leitura de "Orfeu", quando já conformadas da aproximação do fim daqueles momentos e as motivações das duas já são incertas, que o gênio de Sciamma desabroxa. Neste 3º ato a escuridão se torna mais presente até que os limites do cenário não conseguem mais ser distinguidos: uma simulação da queda ao submundo que Orfeu condiciona sua esposa. Todavia, o submundo a que Marianne condiciona a Héloïse é a cultura que ela provavelmente não se interessaria caso não tivesse conhecido a pintora. Um encerramento definitivo para um microcosmo tão subjetivo e catártico.

7. Transit

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   Petzold choca por não optar por uma atmosfera fria e hostil na abordagem de um futuro distópico e sim por uma direção de fotografia que privilegia os planos abertos e uma paleta de cores vívidas, denotando uma familiaridade sombria daquele mundo opressivo em relação à atual histeria da extrema direita (no caso, a de Le Pen); sentimos a presença da ameaça, mas nem sempre a identificamos, de modo que nos tornemos paranoicos. A figura do filho de Melissa aparece como maior símbolo disso, inclusive metalinguisticamente. O esforço que Georg faz para manter a criança alheia aos terrores do Estado é notável e, por hora, consegue devido ao funcionamento normal de praticamente todas as instituições, incluindo a do entretenimento.
   Dessa maneira, o diretor acaba se juntando ao grupo seleto de autoristas (Kiyoshi Kurosawa e o Sangsoo tão nessa turminha) que carregam consigo toda uma gama de obras impensáveis a serem realizadas em qualquer outro tempo pelo tratamento da imagem com certo realismo intrínseco ao nosso zeitgeist (não à toa que o antagonista do filme é a burocracia estatal por conta ansiedade que ela provoca), o que é particularmente surreal pelo filme ser a adaptação do livro homônimo da Anna Seghers ambientado em plena Alemanha nazista. O longa é um caso de estudo sobre como "Um Corpo que Cai" do Hitchcock segue sendo a obra com mais releituras do cinema: um romance em sua essência que se fragmenta em um rigor multilateral de personagens que não querem sair do purgatório coletivo onde se encontram mas também têm medo de seus destinos que, no fim de tudo, são todos incertos. Mais uma vez me encontro em uma situação de ter que analisar um filme do qual ainda não tenho bagagem suficiente para dissecar todas as suas camadas.

6. Dragged Across Concrete

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   O filme mais bressoniano do ano foi surpresa por conta do diretor, o Craig Zahler, apesar deste ser apenas seu 4º ou 5º trabalho, nunca foi muito apegado a formalismo nenhum. Pelo contrário, "Brawl in Cell Block 99" e "Bone Tomahawk" são caracterizados pela espontaneidade das ações e a ausência de qualquer senso de responsabilidade quanto às consequências. Aqui também ocorre uma evidente digressão dos efeitos das escolhas dos personagens, mas todos têm plena consciência do futuro próximo e, por mais que haja autonomia absoluta entre os núcleos de personagens e todos recebem exatamente a mesma atenção e carga dramática (não necessariamente em uma mesma proporção. Por acaso, meu único problema com o filme foi a tamanha tendência dele pender ao sentimentalismo quando via que não conseguiu desenvolver certo núcleo o bastante para de fato nos importarmos com seus integrantes), têm-se a certeza da convergência dos mesmos.
   Numa cosmologia tão maquiavélica, a última coisa que esperava era protagonistas que carregassem qualquer tipo de moral bem definida. Em retrospecto, essa característica, em especial com o personagem do Mel Gibson, é muito bem articulada pela falta de dubiedade dessa moral e os paralelos que são possíveis traçar quanto ao grotesco que a câmera eventualmente nos oferece. Como diz o Tuoto, "Mesmo quando o filme tenta justificar suas ações dá pra sacar que o cara mal se questiona". É nessas horas que mais sentimos a abrasividade do concreto em questão.

5. La Flor

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   Os 6 segmentos, com exceção do fraco remake do "Dia no Campo" do Renoir, se casam perfeitamente nessa jornada de 13 horas e meia justamente pelo diretor, Mariano Llinás, deixar bem claras suas motivações de promover uma ode inesquecível ao quarteto de atrizes do Piel de Lava. Sua austeridade em separar os gêneros trabalhados com tamanha rigidez, ainda mais com o uso contínuo do recurso do in media res, escancarando uma contradição que se permeia em praticamente todos os planos: a busca constante pelo purismo cinematográfico diante das limitações de orçamento (nisso Llinás se aproxima do Sean Baker, mas "La Flor" vai além ao se recusar a dispensar a grande equipe de produção como Baker) e o anticlímax que o fim de cada segmento gera, como se abrisse mão da estrutura clássica dos 3 atos.
   O terceiro segmento, de 6 horas de duração, é a prova máxima disso. Por mais que seja o mais longo, não chega nem perto do que é o 4º (ainda que tente me impedir de hiperbolar nos comentários é inegável que a antepenúltima parte de "La Flor" é o trabalho mais revolucionário de toda a história do cinema quando se trata de metalinguagem), mas é a demonstração máxima do que o Llinás procura estabelecer: por mais que gaste-se 4 horas em desenvolvimento dos personagens com máximo formalismo, pecando inclusive pelo excesso, como é o caso da dublagem (uma parte natural e necessária da produção e distribuição de qualquer obra que esteja aberta ao mercado, o que raramente me incomoda, impediu-me várias vezes de estar inteiramente integrado à articulação da mise-en-scène) nas demais línguas trabalhadas, nada está ali para durar; a sequência final enfim aparece em tela e antes do que espera inicia-se o segmento seguinte o espectador já nem se importa mais com o destino das protagonistas.
   O filme B, o thriller, o filme de espião, o ensaio metalinguístico, a iconofilia por Renoir e o experimentalismo, há espaço para todas as ideias do autor, mas estamos todos cientes de suas preferências e é justamente a maneira com que Mariano consegue dar a todos o mesmo tratamento pra manter a fluidez do filme o que prova a sua maestria.

4. Estação do Diabo

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    Tenho a esperança de que maior nome do slow cinema, Lav Diaz, ainda receberá o reconhecimento que merece por ser um dos que mais entendem sobre o cinema como linguagem. Sua filmografia é essencialmente traumática e, assim como o KMF vem fazendo no Brasil, usa isso ao seu favor como instrumento de resistência contra o governo de Duterte mas também não se limita apenas à temática e não se cansa de estudar a imagem. Por mais que seja um de seus filmes menos prolixos (pouco menos de 4 horas), ele continua sem pressa nenhuma em contar mais uma história sobre a ditadura de Marcos, até porque o enredo é simples, mas a todo tempo Diaz se mostra interessado em extrair toda a emoção possível de seu elenco e ver o que se pode fazer para tornar íntimas as relações do mesmo quanto às noções de mito, até porque tudo aqui gira em torno disso.
   A apropriação pelas forças militares dos mitos contados há séculos pelas e para as populações analfabetas das ilhas mais remotas das Filipinas para que pudessem colaborar com as tropas de Ferdinando é abordada aqui com tom trágico frequentemente reiterado pela decisão de fazer desse filme um musical, ainda mais por fazer questão que os diálogos sejam cantados do jeito mais degenerado possível. Previamente incorporado pela comunidade em que Lorena atende como enfermeira, o mito da coruja logo de cara apresenta seu perigo para todos uma vez que a educação acaba sendo posta em segundo plano, tanto figurativamente quanto literalmente, como vemos na cena em que Hugo encontra a escola abandonada e destruída mas de qualquer forma o cenário é difícil de ser identificado pela câmera ajustar inteiramente seu foco para a expressão de choque de Hugo.
   A soma desses inúmeros exercícios contemplativos formam, na completude da obra, um conjunto de verbetes que, sozinhos, poderiam formar um novo e completo dicionário do cinema. Não que Diaz chegue perto do feito de Dreyer com "Ordet", mas em relação ao tanto que o slow cinema evoluiu desde as primeiras experiências do Tárr, nada do movimento havia se aproximado tanto do estabelecimento de uma verdadeira vanguarda quanto com esse, ainda mais considerando a pegada política que o movimento estabeleceu desde seu início.

3. Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar

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   Toritama é o "Cemitério Pernambucano" de João Cabral de Melo Neto. O poeta se pergunta o porquê de "isolar estas tumbas do outro ossário mais geral que é a paisagem defunta". O tempo passa, a pontuação adequada jamais é empregada em tais versos, a cidade cresce e se torna um polo industrial primitivo onde Marcelo Gomes encontra dentro de si certa curiosidade que o faz questionar as mesmas perguntas que Melo Neto.
   O documentário, por outro lado, demonstra maior interesse no som do que nas palavras. Gomes consegue transmitir a angústia que a cacofonia das máquinas de costura provocam nele não necessariamente apenas com o som delas mas com a antítese estabelecida pela trilha minimalista d'O Grivo, de modo que percebemos que o problema não é o ruído mas o aspecto autômato da pessoa que usa a máquina. Diante da informalidade dos empregos nas facções de jeans, o emprego define quem aquelas pessoas são até que elas possam provar o contrário e planos como esse, em que a câmera ou a máscara de segurança decidem ou não pelo anonimato dos retratados, apenas reiteram essa questão.
   Frequentemente, é dado o poder de voz para os participantes de tal realidade para que possam se defender das predisposições do diretor. De um modo geral, porém, todos dão as respostas esperadas: Canário, o criador de bodes, é o típico caso de rejeitor à modernidade, não nos impressionamos que critique os micro e pequeno empreendedores da cidade dizendo que "o Deus deles é o dinheiro" (não que ele esteja errado); o Véio do Ouro é o completo oposto e, apesar de não ter vegonha de assumir sua condição de "desocupado" em comparação aos seus empregados, não esconde sua ambição de fazer sua grife crescer ao mesmo tempo que se procura fazer a menor quantidade de trabalho possível.
   Num ambiente em que não há diversidade nas atividades econômicas Léo se destaca diante dos demais entrevistados. Apesar de ser pouco instruído e relativamente novo, entende perfeitamente a realidade em que está inserido e como funciona a mentalidade das pessoas de sua comunidade: "Você tem direito de experimentar todas as profissões do mundo. Agora, você só pode seguir uma e a melhor que tem é não trabalhar pra ninguém". Não é uma lógica complicada, mas é o bastante para se justificar toda a ambição que se encontra na população de Toritama ao ponto do dinheiro se tornar Deus dela, algo que independe da idade (os idosos sentados na calçada fazendo o acabamento das peças), dos demais serviços prestados (o próprio Léo construindo a casa de Josivaldo) e até das condições de trabalho (as facções de turno único que abrem às 5 da manhã e fecham às 10 da noite).
   O respeito que Gomes tem por essas pessoas é admirável devido à carga poética que ele atribui em suas histórias, mas sempre atento para não ressignificá-las em sua essência. O Carnaval em si, por exemplo, acaba virando um período anômalo em que a cidade retorna ao seu estado natural de cemitério, ainda que motivada pelas forças do capitalismo criticado por Léo (um comércio a parte é criado para suprir a demanda da diáspora temporária da população), e, às lentes das câmeras, a chuva pós-Carnaval, anualmente profetizada por seu João, é abordada como um fenômeno de expurgo para levar embora as preocupações acumuladas pelos trabalhadores a fim de prepará-los para o início de uma nova temporada de trabalho, enfim encorporando à cidade o significado de seu próprio nome em tupi: "Terra da Felicidade".
   As oportunidades que a cidade oferece são numerosas e pouco dispendiosas, mas não diversas. Nesse sentido, Toritama se encontra na condição de uma república de bananas em escala municipal: até a zona rural, quando seus habitantes optam por ficar, é aos poucos engolida pelo jeans, sempre começando por alguns pormenores, como o ninho das galinhas, que passa a ser feito de sobras de malha. Acontece que a doçura encontrada nos olhares de Marcelo e sua equipe em retratar essa condição do ponto de vista humano compõe, consequentemente, o que definitivamente é o melhor filme nacional do ano.

2. Uncut Gems e Parasita

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   De 2015 pra cá meu filme favorito de cada ano tinham uma característica em comum: todos produzidos pela A24. Neste ano a coisa foi diferente, mas "Uncut Gems" dos Irmãos Safdie, da mesma produtora, me surpreendeu muito. Em 2018, no meu comentário sobre "Bom Comportamento" eu dizia sobre não ter gostado das eventuais pausas feitas pelos personagens por gerar arritmias narrativas que prejudicaram a unidade fílmica. No entanto, em seu último longa os diretores optam por manter o compasso acelerado característico de todos os seus filmes até o final: mesmo nas cenas menos caóticas, como a da peça escolar, é possível sentir a tensão experimentada por Howard.
   Dentro do universo do filme, Howard é protagonista absoluto por ser o principal agente de todos os problemas em que se envolveu. Tudo por conta de ser tão solícito a todos. Ele reconhece a gravidade das consequências futuras, até porque sabe controlar boa parte das pessoas que ele zangou. A mixagem de som, nesse sentido, cumpre um papel importante em ilustrar a entropia que cai sobre ele e, assim como no sentido técnico do termo, cresce exponencialmente até o ponto da voz de Howard ser totalmente abafada pela trilha composta quase que inteiramente por sintetizadores (e eventualmente pelo The Weeknd pré-fama) e pela voz de seus interlocutores.
   A articulação de tantos elementos organizados o suficiente para que o caos caiba inteiramente dentro de toda essa unidade estilística sem, necessariamente, torná-la incompreensível, de modo que o jogo de ilusões sugerido pela iluminação neon e o escárnio perante o materialismo, personificado pelo Howard e seus "colegas", e o comportamento que o acompanha acaba se tornando o primeiro conjunto de evidências verdadeiras da genialidade dos irmãos Safdie, que cada vez mais se aproximam de se tornarem um PTA (coincidentemente, um dos principais atributos nos primeiros filmes de grande reconhecimento dos 2 é a excelente direção de elenco em cima do Adam Sandler) dos humans of late capitalism.

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   A principal virtude de "Parasita" também é a constância de certo ritmo. A diferença é que esse equilíbrio na cadência está na habilidade de conseguir administrar a mesma história dentro de gêneros tão diferentes. A comédia sombria rapidamente se alterna para algo cuja montagem remete os heist movies de sucesso para então se tornar um thriller semelhante aos feitos pelo Scorcese nas últimas 2 décadas flertando com o terror do Kurosawa que logo vira um drama social incrivelmente dependente de rimas visuais (muitas delas até bem fracas pro padrão do diretor) para no fim fusionar tudo de forma que a melancolia prevaleça em nome das marcas autorais do Bong.
   A obra é a que melhor trabalha essa mistura de gêneros, junto ao "A Visita" do Shyamalan, em muito tempo. Porém, Bong, ao contrário do americano, não consegue articular esses gêneros em algo menos heteroforme, o que prejudica um pouco a unidade estilística do filme (É como o JP Faro comenta: "eles não se conversam porque parecem existir em blocos [...]. Pra quem filmou algo tão aterrador e brilhante como o final de The Host, acaba sendo pouco"), mas nada que me frustrou muito. Ainda tá longe de ser "Memórias de um Assassino", meu favorito dele, mas consegue dialogar bem com o público a revolta que a falta de consciência de classe (o diálogo entre Ki-taek e o marido de Moon-wang sobre morar no subsolo, talvez seja o melhor momento em que a questão é abordada devido à simultaneidade de certa ação que ocorre logo acima deles sem que os outros não façam ideia do que veio acontecendo) provoca nele enquanto sociólogo e cineasta, graças ao forte conhecimento que possui no campo da montagem e da iluminação.
   À medida que os símbolos aparecem passamos a duvidar dos caminhos que o filme resolverá tomar; a qualquer deslize corremos o risco de cair na pretensão insuportável dos "Capitão Fantástico" da vida, mas isso nunca acontece devido ao apelo que todos os personagens têm pelo audiovisual, frequentemente fazendo seus próprios registros dos momentos mais banais para a história que, para eles, possuem forte significado diante de tudo o que eles passaram para chegar até ali. O vídeo que Moon-wang faz da família de Ki-taek depois deles caírem das escadas do porão é tão brilhante porque mostra a queda do cortinado que cobria a verdadeira identidade dos infiltrados. Uma situação que momentos antes parecia levar a um fim é revertido com facilidade, de modo que percebamos que há mentiras e encenações de ambos os lados. A pressão coletiva que a família de Ki-taek colocou sobre os ombros da dona da pizzaria láno início é a mesma sofrida pelos mesmos nessa cena.
   O mesmo ocorre quando se fala da exploração do imaginário e das memórias que se materializam: o bolo de aniversário, a apropriação anterior do ambiente e a apropriação futura do ambiente, todos relatados com certo afeto pelos três núcleos é dos frutos mais vigorosos do brilhantismo do longa e uma nova evidência ao apelo pelo visual dos personagens. É como se tivessem uma constante necessidade de encenar. Alguns o fazem em prol da sobrevivência, outros por carência ou busca por empatia, mas a verdade é que essa necessidade nunca se ausenta daquele universo porque é tão essencial para aquela realidade quanto a luta de classes. Assim, aquele espaço utópico, que outrora evocava elegância e integridade (qualidade que, se for parar pra pensar, nenhum personagem realmente têm) se reduz ao caos devido ao levante de certos integrantes do ambiente o sistema estabelecido, mesmo que nem todos saibam que realmente havia esse sistema, porque não há pedra no mundo que estabeleça harmonia entre realidades tão distantes sem mudanças radicais na ordem.

1. Vitalina Varela

   É importante revisar as obras antecedentes antes de nos aprofundarmos na história de Vitalina pois esse último do Costa é, provavelmente, sua magnum opus justamente pelo diálogo que é proposto entre o mesmo e o resto de sua filmografia.
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   O cinema de Pedro Costa se supera a cada longa por ser intrinsicamente onírico e conseguir explorar essa identidade com um vigor absurdo desde o primeiro filme da saga. "Casa de Lava" é Tarrafal e vice-versa (o valor que se dá a todo tipo de edificação é outra característica inerente aos filmes de Costa), de modo que a disposição confusa das casas do povoado se traduz verbalmente pelos diálogos pouco coesos estabelecidos entre os personagens, ainda mais considerando que por mais que hajam vários ângulos para filmar o terreno montanhoso daquela ilha de Cabo Verde de fundo, todos são quase indistinguíveis um do outro. A carta que dá o nome ao filme é um enigma à parte: aquilo que o Tuoto fala sobre utopia do encontro se aplica completamente aqui, mas sabe-se que o encontro em si nunca será estabelecido, apesar de, como veremos mais à frente, a carta ajudará outros a encontrarem aquilo que lhe faltavam o tempo todo para se completarem.
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   A seguir temos a trilogia das Fontainhas. A utopia do encontro é novamente utilizada e, aqui, do jeito mais fraterno possível com todas aquelas personas estabelecendo contato com uma Vanda essencialmente solitária. Mas foquemos em Ventura quando ele aparece em "Juventude em Marcha". Ali notamos que ele passa a carregar o fardo de levar consigo toda a cosmologia enigmática tanto da "Casa de Lava" quanto dos filmes com a Vanda. A linearidade do tempo já é uma convenção há muito esquecida e as memórias se dispõem do jeito que acharem melhor. Nada mais importa além da carta, ainda que Clotilde já não seja mais nenhuma Nhã Cretcheu. É essa pureza e esperança que Ventura porta, apesar de tudo o que passou, o que o faz digno de receber a missão que arrastar consigo ambos os universos.
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   Ventura precisa aguentar as chagas que herdou do filme anterior em "Cavalo Dinheiro". Ele falha em não aguentar o fardo, seu orgulho está ferido, sua esperança é ameaçada e o jeito que é tratado pelo hospital e pelo seu passado piora toda a situação. A iluminação passa a ter um papel fundamental na maneira com que lida com a decadência da integridade física do nosso herói. Murnau se debate no caixão por nunca ter tido a oportunidade de trabalhar o vermelho e o cinza com tanta harmonia, considerando que a insalubridade do ambiente não seja mera sugestão, assim como a escuridão onde os personagens eventualmente mergulham em busca de respostas e memórias. Vitalina nos é apresentada pela primeira vez e, de antemão, reconhecemos o rancor que ela mal consegue conter. Ao mesmo tempo, Ventura desmonta totalmente o tempo ao ponto do passado coexistir com o presente e ser preciso um choque tão grande quanto o que leva com a conversa com o soldado no elevador (é desafiador pensar uma cena dirigida com tamanha perfeição cênica quanto essa, ainda mais considerando que Ventura não é, necessariamente, um ator) para perceber que talvez seja preciso parar e descansar de suas funções. Esse homem-alegoria já não precisa provar nada a ninguém, assim como não precisa de ninguém para deixar as ruínas onde habita.
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   Mariana e Leão nos deram Vanda, que nos deu Ventura, que nos dá Vitalina. "Vitalina Varela" é isso: Pedro Costa menos político e mais intismista com uma nova transferência do universo da saga para a psiquê da viúva de Joaquim; Ventura sai do túnel que o engoliu no final do capítulo anterior pior do que entrou, de fato perdendo a fé na escuridão e agora precisa transmitir certo conhecimento para Vitalina a fim de que ela também consiga acessar o mundo espiritual para poder se comunicar com o fantasma de seu marido (em alguns aspectos se assemelha a "A Ghost Story" como a noção cíclica do enredo e a irregularidade da passagem do tempo pros fantasmas). De certa forma, o longa funciona como uma revisão que Costa faz de sua própria filmografia, mas traça o caminho inverso ao que tentei fazer agora. Inicia-se no breu total do "Cavalo Dinheiro" e aos poucos se mostra tão claro e colorido quanto "Casa de Lava", inclusive retornando à Tarrafal a partir de um flashback irretocável. De um modo geral, por outro lado, o diretor não se importa muito com nada além de dar a oportunidade à Vitalina de contar a sua história da maneira mais íntegra possível, descartando qualquer virtuosismo possível, inclusive pernosticidades com a alegoria da construção civil, aqui mais presente do que nunca antes como elemento de retomada à "Juventude em Marcha". Ao mesmo tempo em que consegue nos dar respostas a questões abandonadas em "Cavalo Dinheiro", como de quem eram as vozes ouvidas por Ventura que pareciam sair do corpo do soldado do elevador ou qual o motivo de todo o rancor que Vitalina no hospital, é aquilo o que o Tag Gallagher fala que "Juventude em Marcha" é o filme com mais portas abertas já feito, mas Costa consegue se superar com seu último, tornando o sexto capítulo de uma das sagas mais surpreendentes já desenvolvidas no filme absoluto de 2019.