sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Infiltrado no Klan - Spike Lee em sua forma mais bruta

Infiltrado no Klan e seus flertes com o mundo atual

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   Nesses últimos anos, Spike Lee muitas vezes ora desenvolve magistralmente apenas a misè-en-scène, como em "Pass Over", ora a cosmologia de seus filmes, como em "Chi-Raq". Mas não se pode negar que ele é um mestre das narrativas e sempre vem com uma premissa completamente original (tirando raras exceções como o remake de "Oldboy" que não acrescentou nada ao original coreano).
   No entanto, seu filme mais recente, "BlacKkKlansman", consegue equilibrar as duas coisas muito bem, podendo ser comparado aos seus filmes mais memoráveis como "Malcolm X" e "Do The Right Thing".
   Baseado em uma história verídica, o longa retrata a dura missão de Ron Stallworth, um jovem policial negro, em desmascarar a célula local do Klu Klux Klan ao mesmo tempo em que tenta prevenir que a polícia tenha motivos para interromper as atividades da União de Estudantes Negros local.
   Instalado em um universo cheio de contrastes (seja pela paleta de cores variadas que dista do tema sombrio da narrativa, ou então pelo uso intercalado de canções e discursos que os dois grupos antagônicos ouvem a fim de reforçar suas convicções), o filme consegue equilibrar muito bem seus núcleos sem que o espectador se perca graças à edição que também deixa espaço para doses generosas de bom humor entre os policiais, principalmente no início dos dois últimos atos.
   São altas também as taxas de angústia e medo em função de uma abordagem corajosa de problemas sociais que o filme evoca, uma das marcas registradas do cineasta. O longa se abre com um monólogo do  personagem do Alec Baldwin que convoca os protestantes brancos para uma perseguição aos negros pois estes os prejudicam. Mais a frente, esse sentimento de opressão evoluirá à paranoia e desespero antes do fim do primeiro ato e se perpetuará alcançado seu clímax na última cena com o apoio de outro artifício de Lee: o Double Dolly Shot.
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    Há chances de no fim da exibição o espectador sentir que arcos de alguns personagens não são dos mais críveis. Além do romance entre Ron e Patricia, que é comprometido por preconceitos de ambos sobre suas ocupações, tanto os policiais abertamente racistas quanto os membros absurdamente ignorantes do Klu Klux Klan parecem ser meros frutos caricatos da liberdade criativa que Lee tomou na hora de adaptar o livro escrito pelo verdadeiro Stallworth.
   Entretanto, na que eu elegi como sendo a cena mais icônica do filme, durante a iniciação de Flip Zimmerman seguida da exibição de "Nascimento de Uma Nação" do D. W. Griffiths, um idoso narra ao UEN a história de seu amigo de infância Jesse que foi morto e castrado por uma acusação mal embasada de um júri supremacista. Acontece que uma parte do testemunho desse idoso retrata exatamente o que está acontecendo naquele exato momento na sede da "Organização", como os membros do KKK se autodenominam, sendo que na ocasião seu líder, David Duke, suplica aos seguidores para que priorizem a América acima de tudo, além de trazer um caráter dúbio à expressão “pessoas de bem”.
   Fica clara então a intenção do realizador em apontar um retrocesso da sociedade atual aos tempos de barbárie. Ainda assim, ele toma uma atitude muito pessoal em explicitar ainda mais sua mensagem nos créditos finais, mas cumpre o que propõe e acaba que não compromete muita a experiência, ainda mais se comparado com a recompensa do "jive" que o espectador recebe um pouco antes.
   Conciliando de uma forma extraordinária um drama social com boas doses de comédia em um ambiente essencialmente urbano, Spike Lee se apresenta mais uma vez  em sua forma mais pura, mas se perde quando abandona a sutileza da mensagem. 9.7/10

sábado, 6 de outubro de 2018

Eighth Grade - O processo de adaptação da geração X com a adolescência contemporânea

Eighth Grade

O processo de adaptação da geração X com a adolescência contemporânea

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   O longa de estreia do comediante Bo Burnham conta a vida da jovem Kayla, uma adolescente com um alto grau de ansiedade que eventualmente progride a crises de pânico vendendo nas redes sociais como o completo oposto disso. Agora com um pé no ensino médio, ela tenta superar seu passado de garota antissocial ao tentar seguir as próprias dicas que ela recomenda em seus vídeos de YouTube.
   Sendo um coming of age produzido pela queridinha A24, era de se esperar algo mediocremente forçado embora exageradamente pesado como “The Spectacular Now”. Entretanto, para a minha surpresa, “Eighth Grade” cumpre o que propõe como um ensaio sobre as dificuldades que o universo virtual impõe sobre essa geração mais nova. Ainda assim, o diretor opta por não evidenciar isso de uma maneira completa. A sequência da festa na piscina, por exemplo, onde Kayla enxerga seus colegas quase como aberrações possui um conceito inteligente, mas sua execução não explora todas as possibilidades. Melhor seria, talvez, se adicionado a isso, mostrasse a figura de Gabe como um refúgio à protagonista, ao invés de mostrá-lo somente como mais um esquisitão.
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   Por outro lado, essa busca pelo mais simples funciona em cenas onde Kayla se encontra completamente sozinha. Não são muitas as vezes em que é mostrado o que a protagonista está vendo, mas estas funcionam devido ao cuidado de Bunrham em notar que em tais situações nem Kayla saiba exatamente o que está vendo, seja por medo e confusão ou apenas falta de atenção. Sendo assim visível a intenção de nos colocarmos no lugar dela, o espectador que aceita tal condição logo sente uma imensa empatia, mesmo que não fosse daquela forma quando tinha sua idade devido a esses artifícios. Vale também ressaltar que a trilha sonora mescla estilos de diferentes épocas em busca de atingir total identificação do público.
   Não só retratando com precisão a vida de qualquer adolescente ocidental mediano, o filme também discute sobre temas cujos quais o diretor normalmente aborda em seus stand-ups. Massificação da cultura, narcisismo condicional e a luta dos adultos em encontrarem um meio termo entre a liberdade absoluta e a rigidez insuportável para com os adolescentes aparecem, sobretudo, com uma grande intensidade nas camadas mais profundas do filme.
   Em decorrência disso, ficou simples notar que o universo no qual o filme está inserido tem as crianças no comando. Enquanto isso, os adultos constantemente buscam sua aprovação ao tentar imitar seus gestos (destaque para os dabs desajeitados do diretor) e não questionar suas ações, de modo que nos questionemos se os mesmos já não estão cansados do sistema os colocarem em uma posição superior que contradiz com suas ações.
   O pai de Kayla é de longe o personagem mais inverossímil, mas ao mesmo tempo o que torna mais evidente essa condição do universo do filme. Ao dizer sim a tudo para a filha, fica a impressão que sua figura é desnecessária ao ponto de ser útil somente na logística da protagonista e gerar no espectador a tão presente vergonha alheia, o que fica embasado pelo diálogo no qual, apesar de ter medo de criar Kayla sozinho, não precisou fazer nada pois ela conseguiu se formar como pessoa sem precisar de ajuda.
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   “Eighth Grade” superou minhas expectativas em função de sua produção, mas alguns elementos da mise-en-scène mereciam ser melhor lapidados, como a iluminação que ora é muito limpa ora trazendo uma atmosfera de insalubridade, nunca arranjando um meio termo. Todavia, cumpre o que propõe e ainda deixa a reflexão sobre como os hábitos dessa geração educada pelas redes sociais possam também influenciar o modo de vida dos adultos e as situações que eles são obrigados a passar para tentar se enquadrar entre os adolescentes, quem sabe mais do que eles próprios. 9/10