terça-feira, 17 de julho de 2018

"Memórias de um Assassino" e a desconstrução do thriller policial

"Memórias de um Assassino" e a desconstrução do thriller policial

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   Uma década antes de atingir sua fama mundial com "O Expresso do Amanhã" e "Okja" o grande expoente do cinema coreano atual (junto com Park Chan-wook), Bong Joon-ho, foi reconhecido pelo thriller policial "Memória de um Assassino" (2003) que conta a história de um departamento policial de um distrito humilde perto de Seoul nos anos 80 e que devem capturar um serial killer.
   Com uma atmosfera noir criada a partir da direção de arte, que visa colocar os investigadores em ambientes claustrofóbicos e insalubres, e da fotografia do Hyung-ku Kim, predominando os tons mais escuros, o longa (tecnicamente) não se diferencia muito de outros filmes do gênero.
   Narrativamente, todavia, "Memórias de um Assassino" conseguiu ser completamente inventivo, não só optando em não se limitar às convenções do gênero como também criando novas estratégias para capturar a atenção do público de formas ousadas, sempre deixando o espectador na dúvida se o assassino será de fato identificado.
   Ousadia essa que, ao meu ver, possa ter servido de inspiração para outro thriller policial, ainda mais popular do que o de Joon-ho, que decide sair pela tangente do que é comumente visto dentro do gênero, "Zodíaco" (2007) do Fincher, apesar dele nunca ter explicitado esta clara inspiração.
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   O que prova a minha teoria é o fato de ambos os longas explorarem suas narrativas tanto pelo ponto de vista dos investigadores quanto pelo o do serial killer, fazendo com que o público saiba de algo que alguns personagens ainda não saibam, o que poderia ser julgado como expositivo.
   Por sorte, e por que não dizer por pura inteligência, ambos os cineastas alcançam êxito em driblar esse defeito. Se no longa coreano podem ser encontradas no roteiro o que pode ser chamado de falsas coincidências, como a captura do suspeito errado e a crença de que o que de fato caminharia para o fim do caso seria um grande equívoco dentro de determinado contexto (contextos esses que, a partir do momento em que o espectador se coloca no lugar do protagonista, percebe-se que estes não tem culpa de pensar que o correto é o errado), no longa estadunidense o espectador é confundido pelas diversas formas que o assassino se apresenta, além do roteiro inteligente achar formas para mostrarmos que o tempo todo estávamos errados.
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   Através de ferramentas, que se manifestam desde uma simples caligrafia até a grande mídia norte-americana, são apontados os erros que cometemos por achar que já resolvemos o caso, o que não impede dos personagens, de certa forma, pedir ajuda ao público por respostas, recurso realizado através de pequenos olhares diretos para a lente da câmera. Ainda de forma mais explícita, este recurso de uma quase-quebra-da-quarta-parede pode ser identificado, principalmente em dois planos específicos.
   O primeiro, logo na primeira hora do filme, aparece com o olhar fixo na lente que Kwang-ho, o jovem debilitado que futuramente será a última esperança de uma testemunha para os policiais, lança quando fala ao gravador do detetive Park, detalhadamente, como foi morta a segunda vítima do serial killer. O segundo, mais icônico ainda, é o plano final onde Park, quase 20 anos depois já numa Coréia do Sul desenvolvida e notoriamente mais cívica (outra virtude do filme é o tempo em que passa, sendo esta talvez uma das únicas chances aos ocidentais descobrirem como a Coréia era antes de seu desenvolvimento definitivo) decide visitar o local em que foi encontrada a primeira vítima, e lá, através de uma garotinha, descobre que o assassino havia visitado o mesmo local, onde "havia deixado algo que fez décadas atrás". Park, então a pergunta como ele era e ela responde "apenas...comum". O filme então se encerra com Park, após esta declaração que claramente não serviu para coisa alguma, olhando fixamente para a câmera (ou o espectador se você preferir), como se falasse que você era o assassino o tempo todo.
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   Curiosamente, Joon-ho já afirmou em entrevista que tinha fé que o filme atingisse tamanha notoriedade que até o assassino acabaria assistindo-o (sim, o filme é baseado em fatos reais, como "Zodíaco"), o que potencia o suspense do filme a uma enésima potência por dar ao público a esperança de que o assassino, de certa forma conseguiu ser capturado, ainda que não fisicamente.
   Por fim deve ser apontada a forma que o filme conseguiu explorar como o trabalho de detetives pode afetar sua vida pessoal. Até o lançamento de "Memórias de um Assassino" nunca havia sido abordada de maneira tão profunda o papel que outras pessoas tem sobre um caso difícil da polícia e como este, por sua vez, afeta as outras pessoas. O mais próximo que alguém conseguiu alcançar foi o Hitchcock com "Um Corpo que Cai", mas, novamente, nada com muita profundidade. Este recurso de mixar essas duas realidades, dentro e fora do escritório da polícia, por outro lado, se tornou cada vez mais comum nos thrillers policiais. Martin McDonagh, por exemplo, utiliza frequentemente esse recurso, como no arco do Chief Willoughby em "Three Billboards".
   Bong Joon-ho, quando produziu esse longa, ambicionava muita coisa, mas com certeza não poderia imaginar que seria um divisor de águas. "Memórias de um Assassino", portanto, não deve ser apenas lembrado como um excelente thriller policial, mas como o filme que reinventou seu gênero.

terça-feira, 10 de julho de 2018

"Tangerines" - O retrato dos conflitos no Cáucaso pós-URSS

"Tangerines" - O retrato dos conflitos no Cáucaso pós-URSS

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   Ivo, um dos últimos camponeses que ficaram em sua região, que se tornou campo de batalhas entre chechenos e georgianos no início dos anos 90, não só ajuda seu vizinho na colheita de tangerinas como também prevê um conflito desnecessário após dois soldados de exércitos divergentes ficarem feridos em um tiroteio em frente a sua casa, o obrigando a ajudar na recuperação de ambos enquanto um ameaça à morte constantemente o outro.
   Com um ritmo suave, tendendo ao arrastado, o diretor de fotografia, Rein Kotov, opta por uma predominância do movimento da câmera para que o tom de monotonia do segundo ato não prejudique ainda mais o filme. Aliás, eu não pude identificar sequer um plano estático no longa inteiro.
   Narrativamente, entretanto, ele chega perto de ser impecável. Dosando precisamente o drama pessoal com a ação, o longa nos oferece uma visão ampla de uma guerra quase que civil onde todos se tratam com desconfiança pelo fato de ser difícil de diferenciar membros dos dois exércitos.
   O conflito inicial de "Tangerines", como já dito, se estabelece com dois soldados de frentes opostas que buscam vingança um do outro pela morte dos parceiros enquanto se recuperam de um tiroteio na casa de um pacifista. A construção de um conflito complexo como este é algo muito difícil de alguém acertar completamente e, infelizmente, esse filme não acerta.
   Entre os poucos defeitos do filme esse é sem dúvidas o mais comprometedor. O roteiro co-escrito por Zara Urushadze e Tatjana Mülbeier não investe em uma profundidade necessária num sentimento de rancor e ódio entre os dois até que seja tarde demais e eles façam as pazes devido ao amor que Ivo emana. Até lá a motivação mais crível para um querer matar o outro é quando um chama o outro de ignorante por escolher defender o lado "errado" da causa, o que não deixa de ser um paralelo com o que ocorre nas redes sociais atualmente. Por outro lado, a resolução desse conflito raso traz como fruto um clímax narrativo e técnico (no trecho a produção evidencia sua maestria na edição de som e fotografia em um fascinante plano sequência) que de tão absurdo o torna o mais realista o possível dentro do contexto daquela guerra.
   Sendo um filme pequeno, o proporcionalmente diminuto perece, de início, não ons prometer muita coisa, mas aos poucos os 4 protagonistas vão entregando performances intimistas e cheias de nuances, considerando que as características mais notáveis dos personagens são dificilmente identificadas, sendo a única exceção a compaixão de Ivo.
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   Com menos de 90 minutos Zara Urushadze não só conscientiza o espectador sobre a pouco conhecida, porém devastadora, Guerra da Abcázia, como também passa uma mensagem de tolerância sem ser moralista, tampouco irritante, ainda dando tempo de utilizar uma oportuna metáfora entre uma colheita de tangerinas e a fé na humanidade, apesar de alguns pormenores narrativos que não chegam a estragar tudo o que acabei de relatar. 7.5/10