sábado, 31 de agosto de 2019

Bacurau - Carpenter encontra Sganzerla

Bacurau - Carpenter encontra Sganzerla 

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   O Western codirigido por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles conta a história de um povoado no interior nordestino que se vê sob uma ameaça invisível que tem como objetivo desaparecer com a existência daquele lugar. Porém, ele vai muito além disso e se apresenta como algo que transcende a própria mensagem de resistência ao atual cenário político do país que o longa busca passar.
   O foco é muito mais voltado ao coletivo, relembrando o primeiro longa de Kléber, "O Som ao Redor". A cidade é, claramente, a protagonista. Há muito tempo não víamos uma decupação do espaço tão eficiente quanto nesse filme. O aglomerado é orgânico: ainda que seus habitantes sejam sujeitos na trama, a peculiaridade da exploração espacial realizada pelos diretores demonstra, desde o 1º ato, que aquele lugar é muito mais do que aparenta. Assim, a massa se torna uma única e organizada entidade que sempre saberá mais sobre o ambiente do que o espectador.
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   Isso ajuda, inclusive, a antropofágica fusão de Sganzerla com Carpenter (homenagem que alcança o plano físico com a fachada em ruínas da Escola Municipal João Carpinteiro) através de uma crescente tensão que explicita a desconstrução do estereótipo do povo sertanejo como um povo simples. É Euclides da Cunha realocado para os dias de hoje. A já citada invisível ameaça (pelo menos ao longo da primeira hora do filme) é notada até pelo mais ingênuo dos moradores, mas isso não os abala profundamente justamente pela grandiosidade da massa.
   A mensagem de que a união faz a força é clara e essa clareza se perpetua ao longo das mais de duas horas de duração. Não há entrelinhas e os motivos são tão claros quanto a obra em si. A crueza do que está em tela se distancia de qualquer possível símbolo ou alegoria, uma vez que fala-se do povo e esse é um dos públicos alvos, então o ideal é ser tão democrático quanto puder. É puro Cinema Marginal. A ideia não é estender a questão através de uma discussão após o término da projeção porque o que move tudo é a inerência da imagem e dos diálogos, é a onisciência da câmera: nada mais importa além do próprio filme .
   No entanto, essa virtuosa objetividade se excede em alguns pontos, incluindo o maior defeito do longa. Há os heróis e os vilões e esses vilões são exclusivamente vilões. Esse maniqueísmo compromete muito do que foi realizado até então, indo até mesmo na contra-mão da linguagem carpenteriana. Ainda que seja válida a contraposição do individualismo desses vilões  ao coletivismo dos heróis do povoado, qualquer coisa mais profunda que isso é descartada e o que se vê é a mais simplista e decepcionante personificação do mal.
   O microcosmo de Bacurau revela um utilitarismo intrínseco a uma gente tão heterogênea quanto o público do filme. Domingas, DJ Urso, Pacote, Teresa, Plínio, Lunga (destaque pro certeiro insight de João Pedro que enxergou uma mistura de Playboy Carti, Lynn da Quebrada e Antônio das Mortes no personagem. Há muito tempo o cinema nacional não tinha um personagem como ele) e até o violeiro se concentram em favorecer o coletivo e somente isso, independente dos meios. O 3º ato é a mais forte manifestação dessa visão, sendo esse o mais cinematograficamente interessante, considerando a condição de Bacurau" enquanto filme de gênero.
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   Depois de TUDO, cada um segue com sua vida, mas ninguém vai poder mexer nos cantos. A guia do museu resume tudo "Quero que deixe como está...infelizmente". Há erros que não podem ser ignorados em prol de uma possível "celebração do cinema nacional" que o longa proporciona para alguns. "Bacurau" e Bacurau são o que são apenas por serem honestos consigo mesmos, mas do que isso adianta se quem assiste reduzirá a obra à ideologia que a acompanha? Acima de tudo, o longa merece ser visto como cinema e não como mera metáfora política pois é um filme maior que tudo isso.

sábado, 24 de agosto de 2019

Era Uma Vez...em Hollywood - Revolução à decadência

Era Uma Vez...em Hollywood - Revolução à decadência

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   O nono filme do Tarantino pega um dos casos mais trágicos envolvendo a indústria cinematográfica e o molda em algo que vai muito além do relato caricato e violento da família Manson: realiza-se uma homenagem a um dos momentos mais revolucionários do cinema, um estudo da troca de rostos e enredos refletidos pela mudança cultural trazida pelos anos 70.
   Optar pelo foco em um astro decadente ao invés de quem estava (ou viria a estar) no centro das atenções midiáticas é uma das mais claras manifestações disso. Assim, ainda que hajam reações exageradas do Rick Dalton, protagonista vivido por Leonardo DiCaprio, em relação aos erros que comete e à desaceleração de sua carreira, representa-se, nele, toda a classe artística que ia em favor do antigo sistema e acaba quebrando a cara com a nova demanda cultural da juventude. Semelhante, inclusive, às próprias direções que a carreira de DiCaprio parece ter tomado, sendo esse longa seu único nos últimos 4 anos.
   O complemento de Dalton encontra-se em seu dublê, Cliff Booth; cujo passado o impede de ascender no mercado, ainda que demonstre ser capaz de muito mais do que sua posição exija. Com isso, sua função de faz-tudo subordinado do galã extrapola o que seria imaginado e a excelente atuação de Brad Pitt nesse papel que, para muitos, seria de simples execução, converge, mais uma vez, com aspectos pessoais da vida de quem o encarna. Não que o sombrio passado de Booth remeta, diretamente, a Brad Pitt, mas que a ironia de Tarantino em submeter o personagem a uma relação de vassalagem para com alguém de igual grandeza na indústria se encaixa perfeitamente ao perfil do ator.
   No entanto, a genialidade maior do filme se encontra em como o realizador conduz a trama de forma crítica ao que justamente homenageia. A montagem propositalmente descontínua e o amoralismo dos diálogos (destaque pra cena da antena e tudo surge a partir dela, a melhor de todo o longa), além da narração em off totalmente anacrônica e falha pros padrões críticos atuais, surpreende qualquer um por serem características de apresentação do filme do Tarantino que mais remete à Nouvelle Vague desde Jackie Brown. Justamente sob o recorte histórico do universo midiático americano do fim dos anos 60.
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   A partir desse elemento, tudo o que antes parecia estranho à cosmologia do longa se torna mais coesivo à trama: o já familiar caráter joyceano de tratar com seriedade diálogos corriqueiros que não necessariamente colaboram com o avanço da história, mas que oferecem ao espectador maior profundidade de seus personagens, aparece aqui, com exceção de outra marcante cena em que Rick Dalton narra sua situação de maneira fabulesca à atriz mirim que trabalha com ele, retorna de maneira muito diferente da habitual.
   Dessa vez o valor é dado ao tempo. Tarantino não tem pressa em contar sua versão da história de Sharon Tate, simplesmente porque se diverte em subverter todas as expectativas através desse ritmo mais moroso ainda que não falte ação (não referente ao gênero, mas que não há momentos em que nada acontece), sendo uma possível referência a "Ulisses" de Joyce. O exemplo mais forte disso é a sequência no rancho da família Manson: o mais próximo que o diretor chega a algo verdadeiramente tenso desde a cena do bar em "Bastardos Inglórios". Aquele circo de almas dispersas formado por "ripongas" contraditórios confunde nossas noções pré e pós concebidas em torno do filme e a maneira em que essa cena opera diante de tudo que nos foi mostrado até ali é, de certa forma, a junção de tudo isso.
   Dessa ambiguidade, que é, de longe, a ferramenta-chave pra ser fisgado pelo filme, partem diversas outras vertentes que em apenas um texto é impossível de discutir. No entanto, a mais interessante é a maneira em que o diretor aborda o próprio cinema. A partir dessa metalinguagem, surge um Tarantino emotivo, mesclando os inebriantes Westerns estilo Bonanza com a sóbria e crua Nouvelle Vague, de forma que essa decupagem única torna o próprio ofício de realizar cinema quase que um terceiro protagonista, sendo sua personalidade a mais dúbia de todas. É clara a referência a "Noite Americana" de Truffault, nesse aspecto, mas a linda homenagem à Sharon Tate, optando em não recriar as cenas de "Arma Secreta contra Matt Helm", não deve ser esquecida.
   Após um longo 2º ato, o diretor enfim aborda a chacina realizada pela família Manson. A licença poética ao factual é usada na mesma porporção que em "Bastardos Inglórios" e nossas expectativas mais uma vez são subvertidas. Aqui, a violência deixa de ser um apelo e se torna apenas o meio em que o 3º ato se concretiza (curiosamente, é o período mais tarantinesco de todo o longa e quando o diretor mais abraça o modo conservador de filmar). Em meio a tantos absurdos, tudo se torna comédia: desde o simples ato de servir ração a um cachorro até a alienação do protagonista a tudo que está acontecendo. Porém, não vai muito além de uma mera vingança ao que realmente ocorreu, deixando de lado a ambiguidade que acompanhou a trama até então.
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   Sendo a conclusão apenas a celebração de tudo que poderia ter sido mas que não foi, "Once Upon a Time...In Hollywood" se torna relato de uma revolução à decadência. A moral da antiga indústria cinematográfica decaia no mesmo nível que a fé na humanidade devido a um maniqueísmo inverso (em ambos os casos, dependendo do ponto de vista) baseado na ambiguidade e nas nuances da natureza humana. Nesse longa, então, Tarantino apanha essa ambivalência e a insere em todas as esferas possíveis, inclusive em sua própria função de diretor, com exceção de quando os "mocinhos" se vêem obrigados a enfrentar os beneficiados por essa inversão de valores. O realizador tinha a opção em se manter em sua zona de conforto e dar origem a algo muito mais caricato, mas é Tarantino em seu melhor exatamente por conseguir fazer algo tão denso com imensa sobriedade.